MICHAEL MANN: “NO RUIR DO MUNDO, O TEMPO É SORTE”

Por Cauê Ferreira de Andrade
Dizem pelos cantos que todo thriller é um drama sobre o tempo – sobre homens ativos contra o tempo, para tê-lo.
A sequência inicial de Profissão Ladrão explora na prática o processo de perfuração de um cofre em todos os cuidados e etapas necessárias que formam sua conjuntura antes, durante e depois do ato, envolto em uma determinada atmosfera imanente do início dos anos 80. Em poucos minutos temos, através da contextualização da rigorosa metodologia exercida pelo personagem de James Caan, um prenúncio claro de que a concepção a respeito das tradições, os princípios e modelos constituintes do gênero – no que concerne o degrau de desenvolvimento que se encontra e quais os novos ares a explorar conforme o contexto específico que está inserido – é, no cinema de Michael Mann, manifesto nos espaços, nas ações e na visão de mundo dos personagens lá colocados, cientes de quem são e de quem sucedem. As feridas do passado, daquela fase incipiente onde pequenos deslizes e injustiças, de peso demasiado, são capazes de redefinir por completo uma vida, também estão concentradas na ação. Por intermédio do seu aperfeiçoamento, serão capazes de alcançar a sonhada emancipação social. A excelência para tanto decorre da completa imersão na função, eles sabem. O preço, talvez não saibam, é a subtração de tudo aquilo que não é diametralmente essencial a sua execução, o lado particular colocado de escanteio à medida que as conexões com o tempo presente estão todas entrelaçadas no agir profissional.
O indivíduo danificado em prol do sistema (ou da burlação deste) também está presente na história do químico desamparado após expor podres da indústria tabagista (O Informante), ou na do campeão mundial de boxe impedido de competir ao recusar sua convocação a Guerra do Vietnã (Ali), mas são os filmes policiais, de profissionais contra o tempo, alienados pelas próprias funções, que vinculam-se com as narrativas míticas de homens confrontando estruturas muito maiores do que eles – o tempo, consequentemente, o meio cujo qual deveria domá-lo. Em suma, trilhando os domínios da pragmática sinestesia hawksiana (Paraíso Infernal à Faixa Vermelha), da inerente perdição hustosiana (Relíquia Macabra à O Segredo das Jóias), da dogmática privação melvilliana (Os Profissionais do Crime à O Círculo Vermelho) e das extrapolações dos domínios citados segundo Sam Peckinpah (Meu Ódio Será Sua Herança à Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia) ou Don Siegel (Os Impiedosos à Fuga de Alcatraz), entre muitos outros nomes e muitas outras vertentes dentre esses nomes, a ação que elucida é a mesma que aprisiona.
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Substância quintessenciada em Fogo contra Fogo, a primazia de sua obra, na extensão do amplo desenvolvimento de linhas paralelas rumo a irremediável colisão em Los Angeles, mensuradas pelo caráter pormenorizado com o qual olha os procedimentos e investidas táticas ali executadas, somente para pôr frente a frente o personagem manniano por excelência e seu duplo: o contraponto prontamente benéfico – a dinâmica rudimentar entre policial e bandido, o cara a cara entre os astros que encabeçaram o gênero durante décadas, a condição manniana de lidar com seu reflexo visando sobrepô-lo – é catapultado assim que a aura de cada espaço (amplo ou restrito), revestido de um conjunto de autenticidades salientadas pelo trato sensorial e pela subjetividade de seu habitante, a precisão com o qual todos elementos deste espaço estão dispostos, adquire a eloquência de estimular por parte do espectador uma profunda relação sinestésica proveniente da consubstanciação da ação diegética com específicas sensações e estados de percepção contidos nas igualmente específicas vivências extradiegéticas – não corriqueiras e nem exercidas regularmente, mas particulares e acentuadas, arejam a mente e o espírito em todos seus poros, embutidos para potencializar a tragédia, que progride para o melodrama e termina no lirismo.
Em determinado ponto, após o caos derrubar dezenas de corpos pelas calçadas no entrecortar consumado de linhas paralelas – reconfigurando disposições dentre a cobertura e o avanço, o ponto de vista e a ciência do movimento – os outrora equivalentes ao abandonarem de mesmo modo todo resto em detrimento do ofício têm uma última chance de renunciarem suas naturezas a favor do que tanto renegam. Contudo, um instinto abafado os une novamente, no local onde as pessoas deixam a cidade, lá se enfrentam por não conseguirem o mesmo. Sob os estrondos dos pousos de aeronaves, a sombra projetada pela luz dos faróis do aeródromo, culpada por trair a posição de um deles a morte, é a mesma que envolve os dois corpos. O espectador sente na pele, com a mesma intensidade ímpar com que sentiu cada momento anterior, o ruir do mundo, seguido do mais profundo alívio. Inaugura-se, finalmente, ao tombar de um deles pelas mãos do único que lhe compreende verdadeiramente, o horizonte para um novo estágio de encenação.
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Os fins (o fresh start para o criminoso, o cumprimento do dever para o homem da lei) podem não se renovar cabalmente, mas as formas de jogar o corpo, integrá-lo e dimensioná-lo na ação, sim. A adoção da câmera na mão em O Informante já vem partir o equilíbrio de Fogo contra Fogo e assumir novos riscos: ferramenta dramática desde o princípio assimilada enquanto novo meio de capturar a sinestesia do mundo, restituir a ação, assumir a gravidade dos corpos em contacto com o espaço bem dimensionado, precisa na desestabilização angular, no vigor das marcações de movimento entre a instabilidade do plano de uma encenação que, firmada a base de fissuras e acoplamentos, passa a desorientar com a mesma força que estabelece, projetar o personagem na ação com a mesma velocidade que lhe contextualiza. O senso de descoberta, a viabilização do improviso e demais experimentações, vem à tona no meio de uma concepção de cena muito bem estabelecida, na qual eventuais fluências do plano são adequadas aos limites impostos a priori. Agora há rigor na maleabilidade: os minutos iniciais do híbrido analógico-digital Ali, onde as vertentes que formam o imaginário do lutador e do preciso contexto social se mesclam todas ao seu treinamento através de cortes absorvidos por meio de fusões de texturas pulsantes, em movimento constante, redirecionando ao invés de rarefacionar o peso da sequência, são um prenúncio claro que o cinema manniano antecipa a flexibilidade e a modulação quanto novas diretrizes.
É como se toda matéria acomulada em Fogo contra Fogo fosse flexibilizada após sua ruptura, e os títulos seguintes flutuassem por sua dispersão, cada um mais imerso numa busca pela depuração. Se alguns soam hiperbólicos ao dizerem que a câmera manniana pode (há muito) se alterar em conformidade com qualquer melodia – a exemplo da valorização do improviso jazzístico imprescindível a construção de novas sobreposições suficientes para sanar a necessidade de adaptar-se a situações adversas (Colateral), ou a digressão de canções dissemelhantes que se interligam por um pequeno fio de similaridade naquilo que persiste no desintegrar de uma e no compor de outra (Miami Vice) – é porque palavras parecem não bastar. Apesar da predominância de construções cênicas indispensáveis a recriação do contexto histórico estipulado, retroceder à encontro com o mito de John Dillinger (ancestral de todos personagens mannianos), invoca de modo claro sobre o simulacro desgastado dos filmes de época, muito acima de meros anacronismos, o mais puro funcionamento das possibilidades do vídeo em proveito do desenvolvimento das diferentes formas de lidar com a câmera e espaço, espaço e corpo: os espaços – visto como construções tridimensionais que devem ser decodificadas – logo transcendem a condição de palco para a ação dramática e se tornam um elemento tão arqueável quanto os corpos.
De repente, da superestrutura até a infraestrutura, a encenação passa a se adequar a qualquer contexto, assimilar qualquer afetação, harmonizar toda alteração oriunda do domínio pró-fílmico que se prolonga em frente a câmera, aberta às intensidades circulantes do mundo e à energia sedimentada nos espaços imanentes, em prol da retórica interna e do prosseguir da projeção de suas aparências. Imagens tácteis que perpassam inflexões nos variados âmbitos da percepção através de situações óticas e sonoras puras, sentidas em uma troca de localidade (da alteração de um espaço restrito para um espaço amplo até a alteração de um continente a outro) ou em uma simples troca de olhares distantes entre Colin Farrell e Gong Li.
Mann sempre priorizou o valor empírico desejando sentir o que os homens que de fato desempenham essas funções sentem em determinadas situações, sobre o contorno de determinados espaços e atmosferas – Caçadores de Assassinos é todo sobre penetrar o ambiente do outro, introspectando os estímulos possíveis diante desse ambiente, implicando um fim – e agora, está munido de um recurso ainda mais espontâneo e integrado de passá-lo adiante, a favor do calor das circunstâncias intensas características do gênero. Somos tomados de um milhão de formas pois estamos confrontando a frontalidade de toda e qualquer ondulação e transformação fugaz de estado, no olho do furacão, no centro do redemoinho, no topo da crista, nos ombros de Ali, na perspectiva dos canhões de Dillinger. Boquiabertos diante de exclamações ininterruptas de modificações de valores e escalas que repercutem nas alterações de ritmo e tom, duração e trajetória, de obras que não só parecem dar conta da totalidade do mundo e de tudo que é surtido a partir dessa totalidade, como fazem dessa totalidade um componente modular de uma sinfonia capaz de transitar com imensa facilidade entre o abstrato e o concreto, o sintético e o analítico, entre a elegância formal e a visceralidade, a estilização e o ultra-realismo, à medida que a coesão interna vem tanto quanto uma reação química.
O mundo mudou com a dispersão de informação e a adoção da mais alta tecnologia – o interior dos homens não. Permanecem presos na superfície, incapazes de restituir a inocência daqueles imersos na realidade corriqueira, dando continuidade ao mesmo desejo melvilliano pelo indefinível, tracionados por algo que está, necessariamente, além dos limites da imagem, além das linhas do horizonte, em busca do porvir. Talvez nesse porvir, quando os limites explorados por ele forem comuns, consigamos dimensionar o quão grande é tudo aquilo que Mann construiu. Talvez.