DRIVE MY CAR: “A VIDA SUBMERSA NO TEXTO”

Por Rafael Miranda
Muito se discute a arte de filmar (Cassavetes, Mann) e a de escrever (Rosa, Milius), mas pouco se diz sobre as artes de ver (Vertov) e ler (Borges). Com isso não quero dizer que o último citado não sabe compor nem que o penúltimo não saiba gravar, mas sim que cada poética tem uma nascente diferente. Prosseguindo nesta linha de raciocínio, dá pra afirmar que, junto com De Palma, Hamaguchi deságua numa arte ainda menos comentada, que jorra todas as outras: a de citar.
Pensando nos vários estudos eufóricos de Hitchcock que o americano realizou como alusões nada cifradas, o japonês se equipara ao diretor de Dublê de Corpo (1984) quando recorta Tchekov e Murakami para colá-los, de maneira indivisível, diretamente na narrativa original. O tão discutido aspecto do luto, apesar de ser uma exegese válida, é incompleto sem o ângulo mais interessante de Drive My Car, que é essa construção aquífera e aracnídea: uma ampla tessitura literária que sempre consegue ressignificar as relações dos seus personagens.
Não estou falando somente de uma questão de argumento; quero que o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado exploda. Lógico que o diretor também merece crédito por esse fator, mas talvez não seja inútil frisar como tudo foi erguido do papel. A dramaturgia (dimensão que é tão bemdominada nos sempre surpreendentes e gradativamente melhores três episódios de Roda do Destino (2021)) das cenas funciona tanto pelo núcleo teatral (ator e texto) quanto cinematográfico (e.g. os planos fixos do ”ponto de vista do carro”, a montagem que repetidamente antecipa sons do próximo contraplano antes deste aparecer e as longas conversas decupadas de maneira cada vez mais fechados nos rostos). A mise-en-abyme sempre age em função da mise-en-scéne.
Começo a genealogia textual pela referência conterrânea ao diretor: a do romancista japonês mais popular da última década. Não cabe aqui me aprofundar na figura dele, mas é importante ressaltar o quanto o longa absorve não só desse conto como do resto da sua bibliografia. Desde, por exemplo, o seu melhor livro, Crônica do Pássaro de Corda (1994), até a curta estória homônima de 2014, incluída na coletânea Homens sem Mulheres junto com os também reciclados Kino e Sherazade (portanto ganhamos de brinde a infinita Mil e Uma Noites), o sexo sempre foi um portal para outros mundos e percepções, enquanto o casamento é principalmente um desconhecimento do homem com a sua mulher. Murakami insiste que só é possível conhecer a ponta do iceberg do outro, entendendo-se somente a superfície do seu lago abismal. E, falando em exterioridade, tudo isso cai como uma luva à grande obsessão de Hamaguchi: a atuação inerente à identidade contemporânea.
Apesar dos mais flagrantes estudos sobre serem Intimacies (2012) e o próprio Drive My Car, mesmo assim a performance, ou melhor, o deslizamento de timbres, atravessa toda a sua filmografia. Em Roda do Destino, pra pegar só um exemplo, todas as estórias envolvem pelo menos um ”uso de máscara” dos personagens. Seja a inicial de Meiko no carro com a amiga ou a final na cafeteria; Nao omitindo o verdadeiro motivo da sua visita ao escritório do professor ao mesmo tempo que revela um tesão muito verdadeiro e, finalmente, o impossível reencontro com o paraíso perdido, resgatado pelo jogo de faz de conta entre novas velhas amigas, Nana e Moka. Aí está um diretor que não perdeu a fé num final feliz, sob a égide do sim.
As perguntas que importam para Hamaguchi são: ”Quem eu sou? O que eu sou? Sou mais verdadeiro quando copio outros ou quando ajo segundo minhas próprias emoções? Imitar alguém, seja este real ou fictício, não é ser eu mesmo sob outra perspectiva? O quanto da minha identidade é alteridade? Ou seja, sou outro? Sou quantos? Sou?” Conversando com o meu amigo Giulio Bruno, ele me disse que entendeu essa busca do ser hamaguchiano como ”o ponto de tensão entre a dramatização e a não-dramatização”. Não há definição melhor que essa, como também não há muitas fitas mais obrigatórias, curiosamente, pra conhecer o diretor, do que A Esposa do Espião (2020), de seu ex-professor Kiyoshi Kurosawa, pelo qual ele co-assina o roteiro. Ali, ao trocar o foco (apesar de ainda haver atores na trama) pelo casal de espiões, o interesse identitário é mantido pois o gênero da espionagem sempre foi também uma grande discussão de identificação, mas a faceta política é realçada a ponto de adicionar uma nova-velha pergunta às suas dúvidas: ”Minha ética condiz com a moral nacional?”
Outro diretor fundamental que orbita o longa é Cassavetes. Muito aqui lembra, propositalmente, Noite de Estreia (1977). Se afastando dessa referência que o longa quer se associar, acho mais proveitoso aproximá-lo a Coutinho. Por mais que existam sérias diferenças entre os dois (o japonês é um cineasta do gesto e da palavra, já o brasileiro
somente da última) há muito diálogo entre ambos, especificamente em Jogo de Cena (2007) e Moscou (2009). O documentarista paulista sempre investigou a medida exata de performance em cada um dos depoimentos que colecionou, mas nesses dois não há muitos outros interesses além desse. É mais do que uma aproximação formal: em Moscou a filmagem é de inclusive outra peça (Três Irmãs, 1900) – ensaiada mas nunca apresentada – do mesmo dramaturgo focado aqui.
Agora, finalmente, Tchekov. Se o conto de Murakami é o esqueleto do longa, a alma do filme é a peça russa. Contém trechos inalterados da peça, reapropriados para complexificar a nova trama. As encenações de Kafuku, claramente num modelo Torre de Babel, precisa que todos os atores falam línguas diferentes, do jeito incomunicável que o Murakami compreende o matrimônio. Logicamente, seus ensaios são dificílimos. E se não bastassem as dificuldades formais, o homem que sua mulher traía-o com se candidata vigorosamente. Aí há a oportunidade de castigá-lo, mas de forma curiosa; tentando jogar o adúltero no buraco que vivia, o protagonista tenta se tornar coadjuvante dessa peça atroz: designa-o papel principal.
Se as coisas fossem fáceis assim! Kafuku não se livra da casca de Vânia, do senso de inferioridade, do ciúmes de Takatsuki, da inveja do sucesso que esse Astrov japonês tem com as mulheres e da dor de ter perdido Oto, ficando só com a gravação da Yelena/Oto. E Astrov/Takatsuki, que deseja não ser nada além de um amante do presente sem consequências, desespera-se quando lhe é incumbido ser Vânia. ”Como ser esse velho?” exclama o jovem; ”Como não ser?” suspira o viúvo. Ao ver a performance de Sônia/Lee Yoo-Na, Misaki se torna um tanto Sônia, e portanto também um pouco Lee Yoo-Na; seu silêncio eloquente é cicatrizado pela língua de sinais japonesa; a tal ”troca” entre atrizes que tinha acontecido no ensaio no parque se repete ao ver a peça e conversar na neve.
Os personagens são de Murakami, a peça encenada é de Tchekov, mas ao entender e religar tão profundamente as duas estórias, surge uma ficção inédita, cujo autor é Hamaguchi. Essa habilidade de discernir exatamente o que usar e descartar de textos de outrora é o que destaca o filme. A frase-chave, dita por Kafuku, é:
”言葉を読んでください. (Só leia as palavras.)”
Janice, em protesto, o acusa de achar que atores são robôs, acha que ele quer uma leitura mecânica. Mas não é isso, de maneira nenhuma: o protagonista simplesmente não vê mais diferença entre viver e atuar, acha impossível dizer algo no cotidiano que não seja um eco livresco. Se pudéssemos realmente ler, verdadeiramente entender as palavras, bastaria repeti-las. Não há vida fora do texto, como não havia existência fora do seu jazigo de família de quatro rodas.
À certa altura do seu estudo da bibliografia de Tchekhov, o dramaturgo Meierhold fala numa ”vida submersa no texto…”. É dessa maneira que Drive my Car é elaborado: escolhendo os textos que complementam perfeitamente as suas preocupações; com os escritos dos
mortos sonorizados pelos seus atores; nos caminhos feitos pelo que restou dos que já foram. Não é saudosismo, mas sim a sabedoria em perceber que Coutinho está no conceito de história benjaminiano, como o Dicionário Filosófico inclui Cauê Andrade, do mesmo jeito que Pasolini e Kant moram em Sade, Miguel Fernandes habita vários parágrafos de Diderot e Vinicius Honorato vive em Pynchon. Adoro Paulo Honório porque também nunca esqueci as raivas; detesto Ulisses porque sei que, diferente de mim, ele foi feliz. Talvez uma definição de clássico que a fita propõe seja uma espécie de obra-córrego que, serpenteando pra fora do tempo, consegue atravessar todos os vivos e mortos (Here Comes Everybody). Proust dizia que na verdade o leitor lê, durante a vida inteira, a si mesmo; Hamaguchi mergulhou tudo isso em rios subterrâneos que, silenciosamente, guiam as estradas acima deles pavimentadas.