UNCUT GEMS: “A ALMA DO NEGÓCIO”

Por Rafael Miranda

Esse texto possui spoilers.

Agradeço a Arthur Eugênio, que me ajudou com a parte etnográfica do texto, e a Pedro Chamberlain, que gentilmente disponibilizou todas as imagens mostradas pela opala.

‘’…as pedras nas entranhas da terra e os planetas nas esferas celestes se preocupavam ainda com o destino do homem, ao contrário dos dias de hoje, em que tanto no céu como na terra tudo se tornou indiferente à sorte dos seres humanos, e em que nenhuma voz, venha de onde vier, lhes dirige a palavra ou lhes obedece. Os planetas recém descobertos não desempenham mais nenhum papel no horóscopo, e existem inúmeras pedras novas, todas medidas e pesadas e com seu peso específico e sua densidade exatamente calculados, mas elas não nos anunciam nada e não tem nenhuma utilidade para nós. O tempo já passou em que elas conversavam com os homens’’. (trecho do conto ”A Alexandrita”, de Nikolai Leskov)

‘’Você só tem aquilo que pode vender.’’ (passagem de A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller)

‘’E já dizia jogador de bicho: jogo de aposta é jogo que é amaldiçoado. Se é amaldiçoado não pode entrar dentro de casa. Então dinheiro que cê ganha com aposta, assim de graça, tu gasta tudo no rolê: usa droga, paga conta, paga aquele táxi pras velha que tá com muleta, tá ligado? Cê não pode ter vergonha de gastar aquele dinheiro não. Dinheiro de aposta é dinheiro amaldiçoado. Vai por Deus. Isso é papo de visão. Tenho meus 21 anos aí, todo dinheiro de maldição que eu peguei na minha vida aí? Virou merda: droga e prostituta barata. Então mano, não mexa com dinheiro amaldiçoado.’’ (Áudio anônimo)

Jóias Brutas (Uncut Gems, 2019), é um filme sobre fé: apostar, como prometer e acreditar, é querer um futuro específico. Possui vários contrastes: o conteúdo imaterial que emana de certas matérias; as condições trabalhistas na Etiópia que se chocam com a futilidade do mundo de apostas norte-americano; a alegria que precede a tragédia. A própria natureza ficcional do longa engloba características documentais (atores não profissionais, o campeonato real de basquete inserido e com seu resultado parcialmente explicado pela estória). Também é uma comédia mórbida, ao mesmo tempo que é um thriller “criminal’’ e, principalmente, uma película fáustica: Howard vende a sua alma em troca de algo. O que eu vou defender nesse texto é que, para os irmãos Safdie, a alma de alguém é sua própria história.

Howard: material e tese

‘’That’s history right there, you understand?’’

O protagonista é Howard Ratner, homem de 48 anos e dono da joalheria KMH Gems, localizada no distrito das joias (47th Street) da Nova Iorque em 2012, interpretado por Adam Sandler. Ele é judeu, pai de família, homem de negócios, adúltero, mentiroso e viciado em apostas. Essa última característica é evidenciada por atos, nunca explicitada por falas.

Por mais que Ratner seja um produto típico da ambiência neoliberal novaiorquina, sua característica hereditária e ancestral, o judaísmo, é distorcida. Ele mente sempre que pode conseguir vantagem, muitas vezes de maneira tão óbvia que deságua no vexatório. Sua confiança (אָמַן, ou `aman, do hebraico) e palavra, aspectos tão importantes no Velho Testamento, não valem nada. Ele não cumpre em pé o que prometeu sentado. Isso resulta numa modificação cômica e invertida de Shylock, protagonista de O Mercador de Veneza: enquanto aquele semita agiota corria atrás de quem lhe devia dinheiro, agora quem foge e se esquiva dos outros é o próprio judeu.

Na cena de jantar, antes da ridícula tentativa de reatar com a mulher (a vida amorosa dele é uma extensão do seu vaivém financeiro e ético) Howard é escolhido, para o constrangimento de seu cunhado (e principal credor) Arno, para ler a Torá junto com a sua mãe. Ele não sabe hebraico. No meio do ritual, faz piadas. Ou seja: desconhece e desrespeita a sua tradição. Está mais interessado em saber se sua amante Julia já saiu do seu apartamento e se o colocou à venda.

Quando explica como conseguiu a opala, fala do povo judeu etíope como ‘’These guys are stranded in the middle of Ethiopia. It’s deep shit. They’ve got nothing. They don’t got cars, they don’t got shit.’’ Pra ele, a possibilidade de alguém viver sem carros automaticamente os enquadra na extrema pobreza. Você é o que você tem. E, se isso for verdade, no consumismo e ostentação de produtos ocos em que ele se insere, ele convive com pessoas que são bem pouco.

Howard possui um anel: o do Knicks (espécie de Santos deles), ganhadores do campeonato de 1973. Nessa equipe, anos antes, estava o judeu que marcou os primeiros dois pontos da NBA: Ossie Schectman. Os anéis representam marcas de passagem na vida de alguém (daí vem a ideia de anéis de casamento e os de formaturas, com pedras diferentes para cada curso).

Quando ele penhora esse mesmo anel, reconhecido pelo vendedor como marca registrada da imagem que ‘’Howard’’ tem na sua mente, o penhor diz: ‘’You had this Knicks ring forever!’’ A ideia de tempo é explicitada, ao mesmo tempo que outra fica implícita: o protagonista está prestes a vender sua própria religião, sua identidade histórica e portanto sua alma, tudo simbolizado pelo apetrecho que emana potência imaterial eterna, em troca de ganho material perecível. Sua morte física lhe espera no final do filme, mas seu falecimento simbólico, junto de qualquer chance de grandeza, tomba ali, naquela empresa de médio porte. Como o erudito Fausto, ele também trocou tudo o que realmente importa pelas ilusões de grandeza que perseguia. A diferença aqui é que agora o homem é seu próprio Mefistófeles.

Howard, quando pega a pedra, tem uma relação prazerosa de curto prazo com ela. Seu olhar sobre ela é erótico (‘’I think i’m gonna cum’’) e não se difere em nada de como ele olha para o corpo da Julia, pela fresta da porta. Tudo que o mundo pode lhe oferecer é concreto e imediato, não há outra dimensão além desta. Sua ligação com Julia não se rompe, após a possível traição dela com The Weeknd (que ela depois descreve como ‘’uma oportunidade de venda’’) por isso: os dois amam o mundo material mais do que qualquer outra coisa.

As duas cenas em que há um diálogo maior entre ele e Garnett são provavelmente as mais importantes do filme. Tudo que importa de caracterização dos dois está ali. O grande discurso de Howard, na sua última cena com Garnett, é especialmente revelador.

Além de englobar a decisão que move a história para o seu ato final, Howard projeta em Garnett tudo que o incomoda na sua vida para a do jogador: diz que o outro está velho, que “todos” o estão vaiando e apostando contra ele, mas que apesar disso o atleta continua tentando vencer a todo vapor e que ainda não chegou onde queria na vida (no filme anterior dos Safdie, Bom Comportamento, há uma cena parecida, com outra projeção, ali executada por Connie Nikas, personagem de Pattinson, mais ou menos no mesmo trecho do filme).

‘’You’re 30 up. You’re still going full tilt.’’ e ‘’That’s just who you are! You’re a fuckup.’’

Paul Schrader disse uma vez que ‘’aqueles que agem contra seus melhores interesses são personagens interessantes’’. É como se os Safdie tivessem lido essa frase e resolvido criar o seu exemplo máximo. Howard não precisa de antagonistas, afinal, quase todas as (espantosas) decisões que movem a história são ele mesmo que toma. O filme retrata os últimos três dias da sua vida, e aí cria uma síntese de um homem que viveu como o Furby de diamantes que mostrou a Garnett: preso dentro uma materialidade opressiva, olhando paranoicamente o mundo à sua volta.

Garnett: imaterial e antítese

‘’Look how this is winking in the light…’’

Garnett representa o oposto de Howard. Em primeiro lugar essa oposição se dá pelo fato de ele ser real: Kevin interpreta a si mesmo, no meio do campeonato de 2012, quando jogava pelo Boston Celtics. Sua história, mesmo que seja informação extra-fílmica, é importante.

Quando ele pega a pedra, questiona porque ela tem tantas cores. Tantas possibilidades. E, em primeiríssimo plano, nós vemos junto com ele toda a sua história pessoal e étnica, através de dezesseis fotos.

Várias da vida de Garnett, outras sobre prédios abandonados e degradados em Chicago (Kevin nasceu na Carolina do Sul, mas fez ensino médio em Chicago. O Estado tem 32% da população composta por negros), o regimento de Gana que foi obrigado a participar da Primeira Guerra, várias fotos dos trabalhadores etíopes da mina Welo do começo do filme, Hererós sobreviventes e emaciados pertencentes ao grupo étnico Bantu, um grande grupo de mineradores na África do Sul em 1910 e o rabino Rabai Shapira, em Jerusalém no ano de 1991.

Aí os Safdies semeiam a ideia de pan-africanismo, movimento que defende o fortalecimento e união de todos os grupos étnicos descendentes da África. Segundo o professor Minkah Makalani, “o povo africano, tanto no continente como na diáspora, compartilham não só uma história em comum, mas também um destino em comum’’. Essa perspectiva de essencialismo racial é revelada a Garnett numa visão, um tipo de transe comunicativo entre ele e a opala. Afinal, a própria rocha também estava na terra-mãe antes de ser comprada e levada para outro país.

Kevin se sente conectado com essa espécie de Aleph porque através dele toma contato com as suas raízes e a sua vida, que deveriam ser a mesma coisa. Fica tão deslumbrado com tudo isso que, hipnotizado e distraído, quebra o vidro em que se apoiava. Imediatamente reconhece que o que acabou de lhe acontecer é um sinal e ele precisa da opala. Como escreveu Lukács em seu livro A Teoria do Romance: “… O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida… na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência… a visão capaz de perceber essa unidade e apreensão divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e, portanto, inexprimível.’’.

No final, quando Garnett e os Celtics ganham o sétimo jogo, e portanto as semifinais de 2012, ele afirma numa entrevista ‘’In the end, it was just me and the rock.’’ Ou seja, durante toda a partida e na hora da decisão, ele não estava só: tinha consigo toda a sua história e destino. Howard, em contraponto, morre sozinho porque não reconhece que para avançar, tinha que saber e respeitar da onde veio.

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra

O filme como síntese

Jóias Brutas são duas horas e onze minutos de uma decupagem estufada de coisas, objetos, bagulhos, tecidos, troços, mobílias, prédios e corpos. Tudo se esbarra. Quantidades absurdas de materiais, que custam quantias ainda mais ridículas, recheiam grandes e pequenos espaços. Howard nem tira a etiqueta das camisas que compra.

‘’Take this shirt. It’s a Gucci shirt. It’s 500 dollars. It’s brand-new.’’

O quarto de um de seus filhos parece uma loja da franquia Brinquedos Laura. Muitas vezes, os corpos estão posicionados de maneira que passam a impressão de serem bonecos de cera ou manequins. Lutam pelo seu espaço contra um mundo de coisas que os engole. A câmera dos Safdie objetifica os corpos humanos numa proporção inédita.

Corpos mobília

O filme é cheio de prenúncios, avisos e alarmes sobre morte: o capanga com vitiligo jura que irá jogar terra sobre a cova de Howard, o programa que a mulher dele assiste mostra uma conversa em que um homem pergunta “What would you do if you just had two weeks to live?’’. Howard diz que se não comprar o anel de Garnett de volta é um homem morto. Como o espectador desatento, ignora os sinais de cautela, que gritam que ele é um “cabra marcado’’.

Gilles Deleuze sintetizou o cinema de Yasujiro Ozu no livro A Imagem-Tempo : Cinema 2 da seguinte forma: “É o pensamento de Ozu: a vida é simples, e o homem insiste em complicá-la agitando as águas paradas.’’ Para os Safdies, o cotidiano é caótico e cacofônico, mas talvez poderia ser simplificado se os personagens percebessem as sincronicidades e sinais à sua volta. Não conseguem porque estão ocupados com as bagunças que causaram.

A trilha sonora do filme pode ser dividida em duas: as músicas originais, feitas por Daniel Lopatin (mais conhecido como Oneohtrix Point Never) fabulam e evidenciam os estados mentais de Howard (The Ballad of Howie Bling, Elation e High Life), enquanto as outras canções são inseridas diegeticamente porque poderiam estar tocando em 2012: Kendrick Lamar, Rich Homie Quan e até Billy Joel (na 89 FM deles ou seja lá qual a estação de rock de pai que Howie escuta no carro).

Nas discussões e críticas do filme, houveram muitas comparações entre esse filme e Vício Frenético (1992), de Abel Ferrara. Por mais que existam similaridades no conteúdo, há uma oposição tão grande na forma que explicitar as diferenças formais ilumina aspectos chave dos dois longas. Enquanto o filme de Ferrara também trata sim de um viciado em apostas, o longa o segue com uma distância exata, uma que possibilita a maior paciência e pena. Não cai na impessoalidade pelo talento do diretor, mas Ferrara não está interessado em compartilhar a loucura do personagem de Harvey Keitel.

O interesse dos Safdies é justamente esse: através da mise-en-scène, das músicas, das falas sobrepostas, dos ambientes sufocantes, da montagem no ritmo do protagonista, eles mostram que sentem repulsa e atração pela loucura howardiana. Essas contradições deixam o filme mais complexo, elétrico e rico.

Sobre a relação corpos e espaços, é interessante pensar nesse filme como um novo ponto na evolução da densidade populacional estadunidense, refletida pelo cinema: dos desertos do Ford, com aquele horizonte inalcançável de Rastros de Ódio (1956) até os corredores e salas claustrofóbicas e abarrotadas de gente no Joias Brutas. Os seres humanos saem do campo e se aglomeram nas grandes cidades até o ponto em que a concentração humana fica insuportável. As possibilidades infinitas do deserto rareiam na selva de concreto.

Howard e a maior parte do filme se movem na velocidade das transações financeiras contemporâneas. O ritmo acompanha o estado do protagonista: quando ele está lidando com várias coisas ao mesmo tempo, a duração dos planos é fatiada pela montagem frenética. Contudo, ainda há momentos em que o filme respira, como no final de cada um dos dias narrativos. De noite, quando Howard e Julia transam, na hora em que Howie se prepara para ir dormir no seu escritório e no momento em que sua mulher lhe pede que vá colocar o lixo pra fora de casa.

É curioso perceber que a falta de semancol é evidenciada pela ausência de momentos de Howard em frente a um espelho. Isso só acontece uma vez: na sua casa, após ser capturado pelos capangas de Arno durante a peça da sua filha. Lá ele olha os machucados nas costas, consequência de suas ações talhadas na própria carne.

Bem, tecnicamente, há um segundo momento: logo após a bala perfurar sua cabeça, Howard cai, e a câmera sobe, revelando um espelho na parte de cima da loja, que agora reflete seu dono morto. Aí está a mais fina ironia, num filme em que elas são frequentes: quando ele morre, cai e fica diante de si mesmo refletido. Mas aí já é tarde demais para se olhar.

Howard vai a passos largos em direção a morte, como Aquiles, enquanto Garnett dispara para a glória, como Ulisses. E mesmo assim é lindo quando ele percebe que ganhou a aposta. As feições de puro êxtase no rosto de Sandler comunicam incredulidade, mas também são uma reação ao inédito, uma resposta a algo que nunca tinha acontecido na vida dele, de apostar tanto e ganhar no mesmo nível, de concretizar o ideal, de materializar o imaterial, de agarrar o inalcançável. Abrir os olhos e perceber que o mundo na sua cabeça finalmente é o mundo à sua volta.

A morte de Howard tem um efeito igual à de outros românticos: sente-se uma grande perda. Em última análise, todos praticam atividades que são, infelizmente, inúteis. Um dia a vida, do nada, vai se interromper, e nesse momento todos os projetos, planos e esperanças cessarão. É como o que Cassavetes escreveu para que Peter Falk dissesse em Os Maridos (1970): a morte é a coisa mais humilhante do mundo.

Portanto, registrar a tentativa das loucas criaturas que propõem um desafio à vida, às vezes também chamada de destino ou teia de regras à qual os homens estão presos, é um ato de compaixão. Nesses fracassados existe uma beleza bruta, fugaz e falha, mas ainda sim bela. O brilho nas almas dos derrotados.