THE BATMAN: “OS DONOS DA NOITE NÃO SÃO OS MESTRES DO UNIVERSO”
Por Rafael Miranda
Recentemente, conversando com um amigo sobre as diferenças entre quadrinhos e mangás shonen, a discussão travou nas diferenças entre as duas indústrias. Grosso modo, o pouco que concordamos era que os japoneses mantinham um modelo autoria = criador enquanto os americanos multiplicam as perspectivas muito além do fundador daquela obra: só olhar a quantidade de pessoas que escreveram One Piece nos últimos 25 anos e comparar com a multidão que assinou as HQ ‘s do Homem-Aranha nas últimas seis décadas.
Por causa da recente ”superheroização” do cinema comercial, o padrão estadunidense de várias visões sobre os gibis, por contrabando, também foi importado para o cinema: cada encapuzado é levado pra tela por um diretor diferente e carrega mais ou menos da visão pessoal dele e daquele tempo. A última variação do Batman vem de um diretor mais capaz do que ele mesmo acha que é. Não é preciso ressuscitar os elogios que Pedro Costa merecidamente teceu ao último Planeta dos Macacos: é só cotejar as cansadas referências – Se7en (1995) e Taxi Driver (1976) – que Reeves claramente recicla contra o que o filme realmente é: um revisionismo ao estilo do seu co-roteirista em Caminho sem Volta (2006), James Gray.
Ou seja, The Batman (2022) pode ser visto como uma espécie de Os Donos da Noite (2007) bem menos eficiente. Não afirmo isso só pelas ótimas sequências de perseguição de carro em ambos. São duas obras de conteúdos canibalmente derivativos, mas formalmente competentes.
Exemplo: tem uma moda burra do cinema contemporâneo, tirando Shyamalan e Mann, que é mostrar só um ou dois personagens e desfocar tudo em segundo plano. Essa escolha, que aqui é extrema a ponto de lembrar aqueles finais de Avenida Brasil, se justifica, tematicamente, como miopia: não enxergar o todo: se focar numa árvore sem ver a floresta: ser um vigilante sem perceber que sua doideira só vinga pelo teu dinheiro. O protagonista (e nós) só vemos o que pouco importa, o resto, o real, é borrão.
Ao jogar o espírito do homem-morcego dentro da linda carne pattinsoniana, ficamos diante de um Bruce Wayne playboy e ressentido que mora em catedrais francamente góticas, se comunica por frases do Thomas Shelby e anda com postura de Frankenstein. Essa divertida caracterização tão trevosa e consciente é parte da chave que aproxima Reeves de um bom feitor como Gray: “Sim, vamos emular certos aspectos da Nova Hollywood, como a italianada mafiosa oleosa do Coppola e as vertiginosas perseguições de carro do Friedkin, mas sempre junto aos comportamentos e preocupações de classe e gênero atuais”.
Inclusive a tão repetida estória de origem, que parece ser evitada por elipse, na verdade é diluída a tal ponto de ser o grande fantasma da fita. A cansada “cena do beco” é sugerida novamente em Selina, o filho do prefeito, o Charada e seus capangas channers encapuzados, em todas as três horas, órfãos e pais.
Mas seria falso dizer que só há acertos. Por mais que haja força na decupagem (que parece até redescobrir a força surpresa do contracampo, como na primeira aparição da Mulher-Gato, com aquela rápida panorâmica ascendente que a apresenta) um dos tropeços mais básicos do longa, além da trilha sonora demonstrativa, é o método de transmissão da trama detetivesca: quase que exclusivamente falado, exaustivamente repetido e pouco imaginativo. Resumindo, didático no pior sentido da palavra.
Ao assumir essa veia investigativa, Reeves não consegue fazer com que o procedural tenha o mesmo requinte, por exemplo, dos enquadramentos. Passado algum tempo desde que assisti, lentamente fui descobrindo o quanto das 3 horas dele foram gastas vendo duas pessoas terem conversas ”em que pé estamos?”, feitas pra situar o espectador. Para perspectivar com o exato oposto, basta estudar esse aspecto do primeiro episódio de Tokyo Vice (2022), dirigido por Michael Mann. Ali, quase toda a parte jornalística investigativa do protagonista no piloto é mostrada; o espectador que junta sozinho novas informações com antigas. Há, nesta maneira de contar estórias, cuidadosamente embrulhado, um respeito com a inteligência dos que assistem que faz falta aqui.
E é bom sublinhar que o longa também é no mínimo reformista; como todo Batman com um orçamento de 145 milhões de dólares sempre será, porque o próprio herói é, no fundo da lente esgarçada aqui, outro instrumento do sistema. Há inclusive uma tentativa de complicar mas imediatamente salvar Thomas Wayne (que me importa se ele se arrependeu ou não de mandar matar alguém?) que desliza tudo na direção do reacionarismo. Pior: da conciliação que não assume um lado declaradamente. ”Há bilionários e policiais bonzinhos!” parece ser seu norte covarde. Ao se aprofundar na desigualdade social que causa um privilégio seletivo na visão do herói, restam duas opções: matá-lo ou aliviá-lo da culpa. Obviamente a primeira nunca vai acontecer.
Esse é o ponto em que a crítica centrada somente no texto falha. É preciso analisar, mesmo que rapidamente, o fenômeno geek na sétima arte para entender porque um filme eficiente, pra bem e pra mal, se destaca no mundo de hoje.
A competição de fãs de empresas, em 2022, toma a forma de ”DCnautas versus Marvetes”. Os impactos disso são benéficos, em termos de vendas de ingressos, para as respectivas donas de ambas: Warner e Disney. Enquanto uma delas não conseguir comprar a outra, revezarão as janelas de lançamentos do pior gênero da história cinematográfica a cada dois ou três meses.
Dizer que O Batman (2022) é uma boa resposta às inutilidades da Marvel só é parcialmente correto: por mais que ele se facilmente se destaque pelos aspectos formais (faz um tempo que o cinema anda tão doente que um blockbuster ”funcionar” já é motivo de euforia) contra a preguiça computadorizada do MCU, a cena do Coringa prova que também há aqui um óbvio interesse em estragar a finitude do filme em si pra plantar migalhas de interesse em infinitas sequências. Por mais que existam diferenças entre o rumo de universo fechado do morcego contra o multiverso da rival da DC, a Warner vai se beneficiar muito se conseguir assumir uma fachada de ”blockbuster de qualidade” ao se diferenciar com tão pouco e fazendo outras tantas coisas iguais: expulsando o máximo possível de filmes das salas pra monopolizar a venda de ingressos.
É interessante notar como um dos mais antigos heróis dos quadrinhos foi o usado pra abarcar uma questão ancestral tão em voga como desigualdade econômica, mas reformulada com os termos do momento (”privilégio”, ”brancos ricos”), ao invés, por exemplo, do Homem-Aranha, herói eternamente jovem e escolha mais natural para problematizações mais recentes. Mas enquanto a última versão é uma casa de espelhos que permite aos fãs se orgulharem por já terem conhecido (e portanto comprado) todas as outras versões cinematográficas do amigão da vizinhança, o Batman foi esticado de forma a fingir não só se interessar por algum tipo de zeitgeist mas principalmente alcançar o topo das bilheterias de forma ”limpa”.
É sempre bom lembrar que, como a televisão, as multinacionais não fazem somente produtos: elas criam, principalmente, um público. Há uma nova massa nas ruas, educada por Crunchyroll, Sony, Spotify, Wander Oliveira, Netflix, Disney e Rede Globo, que está faminta pelo menor denominador comum possível. Todos consumimos o que gostamos, mas só dentro do que conhecemos. Essas pessoas, especificamente o público geek, continuarão exigindo o mesmo prato que foram alimentadas até então. Sabendo disso, a Warner emprega Reeves pra criar nesse Batman um modelo inaugural de algo que é rebuscado quando comparado a outras franquias atuais, mas só isso. Não é o suficiente.
Os novos donos da noite irão assumir o lugar dos atuais Mestres do Universo? Se sim, haveria alguma mudança pros súditos além da bunda que esquenta o trono? Veremos, sem nenhuma esperança, nos próximos episódios.