DAVID ROBERT MITHCELL: “REDESCOBRINDO O CINEMA AMERICANO”
Por Igor Silva
David Robert Mitchell é um dos nomes mais proeminentes do cinema independente nos Estados Unidos hoje em dia. Contrariando vários de seus contemporâneos, o cineasta se debruça bravamente sobre os mais explícitos elementos do cinema de gênero, ao mesmo tempo que mantém — no mínimo superficialmente — certos aspectos de um tipo de filme indie que se encontrambastante recorrentes no cinema americano atual,que de alguma forma priorizam quase sempre uma evidência crua do cotidiano, não considerando a possibilidade de sintetizar relações mais atemporais com o cinema de gênero, tão presentes na história do cinema no país.
A tarefa que Mitchell colocou para si é arriscada: como partir de um procedimento estético em voga para realizar a radiografia de toda a história do cinema americano com o filme de gênero? A resposta está em seus três longas até aqui, mas principalmente em seu último filme, O Mistério de Silver Lake, em forma de comentário mais direto sobre toda essa realidade. Mas enquanto David Lynch medita sobre o aparato hollywoodiano de forma mais abstrata em filmes como Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos, Mitchell faz de seu magnum opus uma tour de force em forma de filme-denúncia.
O diretor consegue a façanha de incorporar em Silver Lake tanto a atmosfera inocente, mas penetrante, de The Myth of the American Sleepover, seu longa de estreia — uma epopeia sobre a descoberta adolescente e a farsa do amadurecimento — como as claras referências estruturais do filme de horror presentes em Corrente do Mal (que vão de John Carpenter a Wes Craven)dentro de um filme que assimila todas essas características em uma chave imaginativa que encontra na cidade de Los Angeles uma espécie de núcleo fantasioso que se transforma em um universo à parte, representativo sobretudo do capitalismo tardio e da mentalidade imediatista de uma sociedade contemporânea.
A grande qualidade da obra de Mitchell está em como o cineasta parte de esboços bastante universais e claramente já estabelecidos (o que fica mais evidente do que nunca na maneira com que o esqueleto da narrativa de Corrente do Mal é exposto, por exemplo) para fundar uma dinâmica de gênero própria. E é justamente por essa maleabilidade apresentada em Silver Lake (já havia tateado terrenos mais “seguros” nesse sentido com seus dois outros longas) que o filme de 2017 se torna tão especial na filmografia do artista norte-americano.
Mesmo a proposta inicial na trama de Silver Lake — um stoner que decide, em meio a uma onda de marasmo, perseguir a esmo o inexplicável desaparecimento de uma garota que conheceu no dia anterior — se relaciona muito bem com a abordagem conceitual do diretor, visto que a busca de seu protagonista depende de uma multitude de estímulos espalhados pela cidade de Los Angeles, com as diferentes referências e concepções de gênero agindo quase como que túmulos em um cemitério (ambiente bastante simbólico no próprio longa), objetos culturais que ecoam pela atemporalidade do cinema e das artes, agindo como elementos catalisadores da procura por importância na mais perfunctória das associações, aqui magnificadas. Mesmo essa premissa soa claramente como uma atualização de Um Corpo que Cai, por exemplo.
Tentando traçar uma possível linha narrativa que perpassa os três primeiros longas-metragem de Mitchell, soa como se o diretor quisesse, depois de definir e mostrar como consegue dar novos significados à gêneros entranhados arquetipicamente no cinema americano, fazer de seu terceiro filme o mais autoconsciente, para assim fundar uma obra sobre espectros. Não é à toa que o cineasta é muito habilidoso ao satirizar diversos elementos da própria realidade e de um cânone pessoal (seu primeiro longa é literalmente assistido por alguns personagem em certo momento de Silver Lake), ao mesmo tempo que assegura antes de tudo a relação do espectador com um pacto ficcional caro à sua cinegrafia.
E toda essa presença fantasmática se solidifica em um jogo evocativo que implode no próprio cinema, que assim como na mentalidade do protagonista vivido por Andrew Garfield se materializa em todos os gestos vazios que comunicam, invariavelmente, uma semântica elementar da forma cinematográfica. Para o espectador atual, domesticado por filmes da Marvel em que tudo é uma oportunidade para encontrar mais um easter egg, Silver Lake se apresenta como uma metralhadora de signos que em qualquer outro filme não significariam muita coisa por si só, mas é justamente a força associativa e randômica que move o protagonista que também acaba flertando com um inconsciente adormecido de uma historiografia universal da sétima arte.
Dos sintetizadores evocativos de John Carpenter até o noir hitchcockiano em meio ao verão de Los Angeles em alta definição, encontra-se aí uma arbitrariedade que define um significado na indefinição, que estabelece seus signos na falta de lógica que comanda desde o mote conceitual do cineasta, até a jornada do protagonista de O Mistério de Silver Lake rumo ao seu inevitável fracasso. Para David Robert Mitchell, assistir a um filme é assumir derrota ao exercer a posição de espectador.