“DEUSES DA ESPUMA E UMA IMAGEM ESPECÍFICA”
por Cauê Ferreria de Andrade


“Take the ribbon from your hair
Shake it loose and let it fall
Layin’ soft upon my skin
Like the shadows on the wall
Come and lay down by my side
Till the early mornin’ light
All I’m takin’ is your time
Help me make it through the night
I don’t care who’s right or wrong
I don’t try to understand
Let the devil take tomorrow
Lord tonight I need a friend
Yesterday is dead and gone
And tomorrow’s out of sight
And it’s sad to be alone”
– Kris Kristofferson
Pode-se dizer que em seu último longa-metragem, Monte Hellman opera utilizando-se do corpo moço de um alter ego, um manifesto sobre suas obsessões com o cinema. Quando Mitchell Haven (as iniciais não me deixam enganar) lembra de uma frase de Warren Oates, mencionando apenas seu primeiro nome, mais do que sinalizar que tanto o nome quanto a frase são familiares nas rodas de discussão entre ele e sua equipe, é como se falasse de um velho amigo. Quando explica qual o principal trabalho do diretor, quando defende o contexto de produção com o qual trabalha e com quais rostos lida, além de tudo que não o interessa nos três campos, se faz presente nos ouvidos do personagem, assoprando suas verdades.
Caminho para o Nada, título bem apropriado. Hellman sempre habitou esse não-lugar. A grande maioria dos seus filmes, senão todos, são histórias que se iniciam do nada e partem para lugar nenhum. O espírito de Hellman, em sintonia com o espírito de Samuel Beckett, circundam a impossibilidade, a não-realização, o não-acontecimento, o não-feito. As conquistas são frutos de um território infecundo, peças dispostas de forma precisa e concisa frente a coisa nenhuma, revelando toda uma rede de complexidades e desdobramentos de um mesmo estado conforme se movimentam aos olhos curiosos de seu criador. Lá, o gesto pelo gesto, sem a preocupação narrativa e todos os porquês por trás do gesto – as ações não se baseiam em causas e consequências para existirem, os personagens vivem, simplesmente, não representando ninguém exceto si mesmos.
A já familiar suspensão parece revelar a habilidade de seu ímpeto criativo em crescer e se aprimorar oposto a limitações e precarizações. Talvez, quem sabe, a curiosidade em testar até onde é capaz de chegar, quais efeitos estéticos conquistará com tão pouco. Se retorna após vinte anos afastado, é tão somente porque não conseguiu se libertar das imagens, da imagem. Bem, seu cinema é todo construído a base de imagens específicas, de contextos e realizações específicas. Nunca em proveito de construções utilitárias, precisas no que há de mais genérico. O processo é o inverso: entende profundamente o material, o interior dos personagens, e deixa com que desempenhem suas ações em um panorama controlado e desabastecido de acessórios, ao invés de criar todo seus materiais visando cumprir uma agenda de objetivos – os resultados são conquistados, não arquitetados.
O cinema que nega contato, e que segue após sua morte, é o segundo. O de Deuses de Espuma, que se desfazem com o primeiro sopro. Pode debandar para diferentes cantos, desde que nunca deixe ambíguo seu pertencimento a um respectivo cânone, garantindo que o espectador jamais esqueça com qual ideia de filme lidará, qual o menu. Passa a responsabilidade de seu funcionamento para o público, cabe a ele projetar o que for capaz sobre os esboços na tela, esgotar seus desejos frente ao absoluto nada até que os créditos subam. Inaugura-se um fenômeno até então inédito, mas sintomático: a comoção pela própria capacidade de se comover. Visto em diferentes níveis conforme o cânone, reforçando raízes comuns ancoradas na publicidade.
A cena deixa de ser ponderada tanto quanto cena, para se tornar uma vitrine de uma ideia mais geral do que si mesma. Espécime de obsolescência programada, não é feita para durar, é feita para funcionar – dentro de uma lógica que de nada tem a ver com o funcional dos velhos mestres, artesãos se desdobrando para solucionar as mais variadas questões. Leia-se: passar a ideia, cobri-la utilitariamente, sem demais comprometimentos, durante um determinado tempo, que é o de sua metragem, podando os elementos que possam vir a tumultuar a relação instantânea entre produto e demanda. Não há, nem nunca houve, a possibilidade de imergir nessas imagens bidimensionais, sem espessura ou densidade, desejando sair renovado do outro lado.
Hellman, por outro lado, nos confronta com imagens que persistem sob toda pressão externa. Seus personagens são ordinários, de difícil afeição, sem background, e os rostos e corpos que lhes encarnam estão longe da perfeição estética de um DiCaprio ou uma Johansson. Os fatos são frontais, não nos poupam nem se justificam como efeito aplicado dentre uma grade de metas que no fundo visam um suposto “bem maior” ou a “conscientização das plateia”, exemplinho típico de bom tom. Sequer evaporam em detrimento de uma metáfora rasteira – se um galo de briga se torna um receptáculo das ambições de seu dono, é apenas porque vemos o animal se destroçar luta após luta, sem qualquer concessão ou trucagem.
Seguindo as dicas de Kristofferson, deixando o diabo das demais problematizações para o amanhã, enquanto vários níveis de realidade vazam entre si, as cenas adquirem a autonomia de encontrar em seus próprios limites um fim, até restar uma única imagem síntese de todos os desdobramentos. A caminho para o nada, o destino é sua própria extensão.
