DRAGGED ACROSS CONCRETE: “CASA GRANDE E SEM ZAHLER”
Por Rafael Miranda
Esse texto contém spoilers.
”First man to die
For the flag we now hold high (Crispus Attucks)
Was a black man
The ground where we stand
With the flag held in our hand
Was first the redman’s
Guide of a ship
On the first Columbus trip (Pedro Alonzo Nino)
Was a brown man
The railroads for trains
Came on tracking that was laid
By the yellow man
We pledge allegiance
All our lives
To the magic colors
Red, blue and white
But we all must be given
The liberty that we defend
For with justice not for all men
History will repeat again
It’s time we learned
This World Was Made For All Men”
(Stevie Wonder, ”Black Man”
Dré-gue-di Á-cros Com-crí-ti: a ponta da língua brasileira faz uma viagem ao céu da boca cinco vezes. A gostosa pronúncia desse título cabralino contrasta com a proposta, que é desenterrar a maldição contida em cada metro quadrado dos Estados Unidos reais através de uma cidade fictícia, do mesmo jeito que Comboio do Medo (1977) evidenciou a danação da América Latina colonizada inteira, por metonímia, através da Colômbia. Resumindo, o terceiro filme de Zahler é uma trilha manca e direta pro inferno que já estava lá desde o primeiro passo.
No painel da estória, três grupos são focados, com destaque de minutagem para os dois primeiros:
1 – A dupla buddy cop quase white trash composta por Ridgeman (um Mel Gibson mais ogro do que nunca) e o italianíssimo Lurasetti (Vince Vaughn).
2 – Henry (Tory Kittles) e Biscuit (Michael Jai White), dois amigos de infância, ambos pretos, contratados como motoristas de fuga de um assalto à banco.
3 – O silencioso vilão, obviamente alemão: Vogelmann (Thomas Kretschmann, branco favorito de Hollywood pra interpretar nazistas) e seus dois capangas, muito mais marcantes que o chefe, idênticos em altura, racismo e sadismo. Só é possível diferenciá-los pelos timbres e cores de luvas diferentes (um usa um par cinza, o outro, preto).
Os coadjuvantes escalados, como os jagunços de Vogelmann fazem questão de discriminar, são quase todos étnicos, pelo menos para os padrões racistas utilizados: o motorista do ônibus; a paixão de infância de Henry e o caixa da lojinha de conveniências destroçada; o latino com o amigo dentro do carro; o vendedor árabe da vã; os meninos negros que atormentam a filha do casal policial e os dois judeus proprietários. Até Henry e Biscuit fazem whiteface – disfarce primo de Pattinson e Safdie em blackface no roubo de Bom Comportamento (2017) – quando vão assaltar o banco. Especifico a diversidade do elenco porque a fita provocadora não só joga na cara do espectador esse aspecto dos personagens como também enfatiza-o em facetas formais, principalmente a luz.
Cada ambiente possui um equilíbrio luminoso de intensidades diferentes, que obviamente varia de acordo com a riqueza dos donos daquele local. O pobre apartamento da mãe de Terry, por exemplo, é visto somente com dois focos de luzes duras: o abajur e a lâmpada. Já a loja de ternos, a joalheria e principalmente o banco, os três ambientes mais ricos do filme, todos propriedades judaicas, são iluminados com verdadeiros holofotes, quase como se fossem estádios. Esse clarão – especialmente quando combinado as lentes usadas e a loquacidade dos donos circuncidados – causa forte estranhamento, como se fossem aqueles sets do JJ Abrams, causadores de tantos flares. Aqui a iluminação se torna um curioso tipo de anti-semitismo fluorescente, como se a câmera arrancasse os humanos do meio ao se aproximar do dinheiro.


Essa provocação zahleriana também está nos diálogos. Exemplos: a conversa entre o chefe da polícia e seus dois subordinados embrutecidos e ressentidos, em que reclamam da ”intolerância com que a mídia retrata a intolerância”, poderia ter saído de alguma coluna do Pondé; a cena em que a senhora Ridgeman diz que ”não era racista antes de se mudar para essa vizinhança” indigna todos que sabem que ameaças de estupro a mulheres brancas é a desculpa mais antiga pra justificarem linchamentos.
Esse tipo de afronta não pode ser entendida somente como a posição política do autor, numa visão demente que confunde foco narrativo com a moral da obra, nem só como revolta contra a burra ”busca de espelhos” que a pior parte do cinema contemporâneo – a que faz filmes pra ilustrar apostila de estudos culturais – se tornou. Essa atitude deve ser vista principalmente como uma visão de História dentro da estória. A primeira sempre é escrita pelos vencedores, mas a segunda pode ser feita pelos fracassados: Zahler rejeita violentamente qualquer noção de democracia racial e a substitui pela anarquía étnica, pós-escravidão sem integração. Além dele, no panorama cinematográfico de diretores estadunidenses recentes, só os Safdies lidam tão corajosamente com raça.
E, para concretizar essa visão de fora da Casa Grande, o diretor subordina qualquer noção identitária à questão de classe.
Os dois grupos locais estão debilitados. Alguns literalmente, como a recém mãe (Jennifer Carpenter em estado de graça) com algum tipo de trauma pós-parto, a esclerosada esposa mãe de família e o irmão cadeirante de Henry: todos precisam de cuidados especiais. Como a ligação da namorada de Lurasetti prova, não há interesse corporativo em gastar dinheiro com essas necessidades. Portanto, como prover para as famílias, nesse mundo de economia enfraquecida e terceirizada? Pelo crime. Todos os lados da lei, etnias e ideologias se afunilam com esse fim. Um dos maiores méritos do filme está no ritmo que essa convergência desesperada ocorre.
Zahler, na sua gramática fílmica, usa mais mastershots e planos médios do que closes. Isso evidencia o belo trabalho de luz, ao mesmo tempo que sempre integra os personagem num meio inóspito. Mas também é curioso perceber como a lentidão, aspecto tão comentado em sua filmografia, depende muito mais da quantidade de cenas do que dos planos em si. O tempo médio de sua decupagem não é longo. Se fosse, as conversas poderiam ganhar um peso pelo timing precisodo velho acordo campo-contracampo, que ajudaria a quebrar a dependência da dramaturgia tão calcada no texto.
Enquanto o longa peca por uma irônica pressa de montagem interna a algumas cenas, especialmente a da tensa viagem na vã criminosa, há um poder argumentativo inegavelmente bem encenado. Desde o tocante instante de rememoração de Henry – em voz para tranquilizar o amigo – até a trágica interrupção para contar a espantosa estória de Kelly, tudo é encaminhado com uma paciência enxadrista para o ato final no galpão abandonado.
E lá, com tudo devidamente encadeado, está liberado destruir tudo com muito prazer. Toda a raiva dos personagens, individual e ancestral, pode explodir – ou ser frustrada – no sangrento playground bege. A chance de casamento de Luresatti é negada? Melhor que morra logo também. E porque não aproveitar e descontar alguma frustração no celular com a foto da amada que recusou o casamento? Ah, e Biscuit vai ser assassinado? Pelo menos serviu para dificultar o plano de Vogelmann ao engolir uma chave, o que deu a chance dos policiais encurralaram os vilões dentro da vã, gloriosamente capotando-a. Enquanto as duas facções se destroem, Henry, o verdadeiro protagonista, observa tudo de longe, pronto para dominar o vencedor enfraquecido. Toda essa sequência de gatos e ratos ossificados é a cereja da até agora curta mas promissora filmografia de Zahler.
No final, até o tema ancestral de ”honrar a palavra”, que os dois policiais e Henry tanto falam, fica em segundo plano. O que está em jogo, na traição final, é uma desconfiança mútua, de dois representantes da lei/criminalidade, com honras inversas, e principalmente entre duas raças historicamente inimigas, opressor e oprimido. Mas com uma troca de tiros a balança é invertida na irônica locação rica ao final: o ser agora habita um meio que não era dele. Ele acordou do pesadelo que chamam de História. Já a porcentagem final de Ridgeman, que apostou em 40% de dinheiro para a sua família, foi muito otimista: para Zahler, as probabilidades de sucesso, numa terra tão desigual, são quase sempre nulas.