“ELOGIO A CRY MACHO”

Por Miguel Fernandes

Filosofar não é senão aprender a morrer

MICHEL DE MONTAIGNE

Na história da arte, dizem, há um grupo de artistas que encarnaram um fenômeno curiosíssimo, muitíssimo particular: quando no terço final de suas vidas, alcançaram eles a sua mais profunda essência, o seu mais pleno despojamento, o ponto máximo de sua lucidez. O Sófocles de Filoctetes (85 anos), o Tessai Tomioka dos anos 20 (87), o Manoel de Oliveira de Um Filme Falado (91)… e, agora, o Clint Eastwood de Cry Macho. Custa-me a crer, no entanto, que, quando o sr. Eastwood não mais for deste mundo, este filme será lembrado como um dos seus melhores. Por méritos já reconhecidos, talvez Os Imperdoáveis ou As Pontes de Madison gozarão, como gozam hoje, de mais prestígio, enquanto este pequenino encontrará refúgio apenas nalguns que, como eu, veem nele méritos que os demais não têm, ou que ao menos têm em menor intensidade. Mas se eu acredito, pelo contrário, que este filme tenha de fato méritos e motivos para ser lembrado com admiração, é justamente porque, vindo de uma sequência de filmes mais “modestos” (A Mula, Richard Jewell), nele o sr. Eastwood alcança coisa que jamais vi em sua filmografia: esse grau de essência, de despojamento, de lucidez.

Cry Macho, estreado nos cinemas em setembro de 2021, não precisou de muito até que suscitasse reações divergentes. Era ainda setembro e já se podia ver, pelas cotações e pelas impressões do público, as opiniões que fizeram deste um filme não tão bem recebido. De fato, controvérsias serão boas na medida em que incitarem um debate, prolongando a vida e a experiência de uma obra; e, sendo assim, não seria esse um dos motivos pelos quais Clint, hoje, é um dos dois ou três maiores cineastas em atividade, um dos motivos pelos quais sua obra conserva sua vitalidade, seu vigor, para além dos méritos próprios a ele? Pois trata-se de uma obra aberta à discussão, e que reconhece o homem não como uma ideia do que ele deveria ser, mas como ele é e como pode ser, desde o beberrão Red Stovall[1] até o grumpy old man de Gran Torino.           

Obra profundamente humana, em outras palavras – coisa banal de se dizer, sim, mas sabemos como a contradição ou o dualismo, desde Griffith a Ford e até Clint, são total e irresponsavelmente repelidos.                                                                               

Mas é de Mike Milo que trata este Cry Macho. Embora profundamente humano, este senhor – cujos movimentos não são mais ágeis, cujo gosto pelo álcool é moderado (“Just a beer, please”), cuja afinidade com a natureza ainda é grande – está longe de ser um grumpy old man, ainda que lhe pese um passado lutuoso, que deduzimos por aquelas lágrimas que lhe escorrem do olho.

A respeito deste filme, muito se tem dito de um certo classicismo, também de um acertar de contas de Clint com o passado, e que o autor de Gran Torino encontra em Cry Macho um eco de todo o seu cinema, com referências simbólicas e coisas do gênero. Mas, muito pelo contrário, embora seja possível, nesta relação entre o sr. Mike e o jovem Rafo, reconhecer o Chaplin de The Kid, o Ford de Just Pals, ou mesmo o Clint de A Perfect World e alguns dos filmes já mencionados, vejo aqui um filme que não está a prestar contas a outra coisa ou a outrem, nem mesmo um filme em que Clint busca redimir-se com algo ou com o passado; vejo um filme, enfim, cuja palavra-chave é espontaneidade.                                                                                                           

E é desse modo que, para parafrasear Caeiro, Cry Macho é a história de um homem que, porque o não foi achar, achou – e isso vale tanto para Mike quanto para Clint, ambos homens que parecem não ter aposentado por não ter outra coisa a fazer, mas que, seguindo sua simples vocação de trabalho (“I got a job to do”), um itinerário que não tem lá grandes ambições, encontram uma nova concepção de vida. Ao caso de Clint, classicismo, então, se empregamos o habitual sentido do termo – o de uma busca deliberada por uma concepção poética e estética de outrora –, não me parece um termo adequado, pois a principal busca, aqui, não é a de reatar com uma concepção do passado, seja Ford, seja Griffith, seja qualquer outro. O passado importa na medida em que representa, não o refúgio das almas desoladas com o presente, mas um percurso de amadurecimento para ser o que se é hoje. E o resultado, com Mike e Clint, é que se perde o medo da morte e encontra-se o amor, a amizade, a simplicidade. Porque o não foi achar, achou.

Mas onde está o despojamento de Cry Macho? Olhemos, por exemplo, em comparação a Gran Torino, como o sr. Eastwood, tendo aprendido a morrer ao longo desses anos, abandona toda a facilidade de uma catarse e segue novos rumos; como ele abandona toda a “intelectualidade” de metáforas visuais, simbologias, e adere às coisas por elas mesmas; como cada sequência deste filme se reduz ao essencial, ao emprego do simples e sóbrio campo/contracampo, sem virtuosismos, sem brilhantismos. O habitual plano geral de uma paisagem que encerra os filmes de Clint é, aqui, seguido de um dulcíssimo epílogo: não vemos o homem, só, apequenar-se na paisagem, mas vemo-lo, de perto, intimamente, dançando bolero com seu grande amor; e, com “facilidade”, quis dizer apenas que as situações de Gran Torino são muito mais aptas à comoção[2], enquanto a violência e o terror em Cry Macho não são excluídos de seu universo, mas encarados e evitados com admirável leveza – aquele galo Macho, por exemplo, que risivelmente desarma um capanga. E, por fim, um tanto diferente de Gran Torino[3], o sentimento de Cry Macho provém exatamente das próprias coisas – desse senhor que ensina um garoto a domar um cavalo, que estende uma jarra d’água a uma garotinha, que resta sua mão sobre a de sua amada… “É só isso? Precisamente.”

Eu disse acima a respeito de um certo classicismo. Após ver o filme, confesso ter sido tomado pelo inescapável pensamento de que Cry Macho é, não “classicista”, mas clássico por excelência. Como disse acima, muito se diz de Clint como um alguém que, hoje, busca manter-se no caminho trilhado pelos clássicos (grosso modo: a natureza e o homem como modelo primordial de sua arte, elaborada nos conformes da transparência). Essa busca, no entanto, revelaria uma consciência histórica que está ciente de ter vindo depois, cujo exemplo mais óbvio poderíamos encontrar n’Os Imperdoáveis (embora um tanto “revisionista”),o qual depende dos antigos westerns para ser o que é.E é clássico por excelência, pois, este Cry Macho, não só porque há nele o equilíbrio espontâneo entre arte e natureza, entre o que se conta e como se conta, entre beleza e simplicidade; mas é-o, sobretudo, porque jamais buscou sê-lo, e porque, feitas algumas ressalvas, não depende de outro para ser o que é.                                              

Daí por que eu dizia que, neste caso, espontaneidade é uma das palavras-chave para tratar deste filme, porque Cry Macho é fruto fresco de uma arte que matura há 60 e muitos anos. De todo modo, designações do tipo são miúdas perto do que emana deste filme – toda a ternura, toda a serenidade, toda a sabedoria, todo o amor do mundo. E, se tudo o que eu disse for mesmo verdade, veremos que o sr. Clint Eastwood está longe de se manter apenas nas sombras dos grandes mestres e que hoje ele é um grande mestre, um senhor de si, sábio, que não mais teme a morte como antes parecia temer. Pois se ele abandona a “intelectualidade” e a “facilidade” e, aos 91 anos, fazendo um filme como Cry Macho, alcança a sabedoria e o que é essencial, é porque todos esses anos de vida(s) ensinaram-no que não há porque temer a morte ou entregar-se ao luxo do excesso; que philosophía só se efetiva com a presença do amor, da amizade; e que só se sabe viver quando se aprende a morrer.

Sei bem que não pude esgotar as possibilidades de Cry Macho, este filme despojadíssimo que parece bastar a si mesmo. Mas, à guisa de conclusão, direi apenas que, se a arte, como diz Rohmer, é como um ser dotado de vida, que tem sua infância, sua maturidade e sua velhice, acredito estar o cinema, hoje, no estado de uma velhice decrépita, estagnada, indecisa entre querer, fugazmente, recordar de sua juventude, ater-se aos temas e modas do presente urgente ou inventar coisa para a posteridade. Situação paradoxal, decerto. Mas Cry Macho, o pequeno grande filme deste último ano, não está em nenhuma dessas posições. Pois que um filme – para ainda citar Rohmer – pode ser o reflexo de seu tempo e a um só tempo o seu antídoto.                                                                                                                                                                                                                                    


[1] Honkytonk Man (1982).

[2] Embora não sejam de fácil desenvolvimento. Mas Clint Eastwood, em Gran Torino, o seu melhor filme junto de Cry Macho, foi muito mais do que um simples êxito ao meu ver.

[3] Como exemplo, cito dois momentos soberbíssimos em Gran Torino que dialogam um com o outro: um, quando a tela da cabine de confissão da igreja separa Walt e o padre; outro, quando, no porão, uma porta separa Walt e o jovem Thao e, a respeito da morte, Walt confessa-lhe coisa que não havia confessado ao padre.