ENTREVISTA COM AFFONSO UCHOA
Uchoa é cineasta. Dirigiu, entre outros, A Vizinhança do Tigre (2014), Arábia (2021) e Sete Anos em Maio (2019). A equipe da Imagem & Palavra agradece ao entrevistado e também à cineasta Natália Reis por ter possibilitado essa conversa.
Por João Gama e Rafael Miranda
João Gama: Os anos 2000 representam uma renovação e, ao mesmo tempo, um esgotamento das possibilidades cinematográficas. Ao mesmo tempo que ele reflete sobre a sua morte, em produções como Holy Motors (2012) e Vocês ainda não viram nada! (2012) ele moderniza e repensa o cinema clássico, com diretores como James Gray. Nesse movimento duplo de renovação e exaustão, onde você acredita que seu cinema se insere?
Affonso Uchoa: Essa é uma bela e difícil pergunta. Ela exige certa autoconfiança e arrogância de achar que meu trabalho dialoga com o cinema contemporâneo… claro que dialoga, são filmes feitos recentemente, mas fazer pareamentos e achar semelhanças tem lá o seu lado valorativo… A minha relação com o cinema contemporâneo é bem tradicional, de um realizador cuja realização é decorrência da atividade como espectador. Minha relação começa como espectador. Por novidades que me deixaram intrigado, pelo menos o que era novidade no comecinho dos anos 2000. Fiquei muito tocado com algumas invenções e experimentos. Não é questão de esconder: da paixão como espectador nasce o desejo de explorar isso como realizador. É sempre um pouco traiçoeiro a gente tentar falar com tamanha consciência, tentar situar o próprio trabalho dentro de um escopo mais amplo, mas mapeando o que foi posso e o que foi importante pra mim, em primeiro lugar, é inevitável dizer que meu cinema dialoga com a face digital. Isso é uma marca do cinema contemporâneo que vai além do estético, da textura de imagem, da fatura visual, porque o digital é uma revolução do modo de produção. A questão dos tempos distendidos, não só internos do plano, da cena, mas também do modo de produção dos filmes, escapando do regime de 4-6 semanas de filmagem, de toda a economia da eficiência que a película demandava, por ser um material muito caro que exigia uma organização maior e mais rígida da produção, tudo isso foi colocado em cheque com o digital. Se abriu uma nova experiência do tempo, em duas dimensões: a primeira é a do sistema de produção, da forma de realização dos filmes, em que os tempos ficam menos industriais, menos eficientes, e com isso também mais distendidos e também internamente, na exploração da duração, dos tempos até mais mortos, menos dramatúrgicos, o que abre uma outra concepção dramatúrgica, mais apegada a fenomenologia, ao que acontece, a uma espécie de ”tempo real”… Isso sim me parece uma marca e uma força do cinema contemporâneo e isso me parece estar relacionado com o meu trabalho, porque a maneira com que eu fiz e procurei fazer os meus filmes, foi dialogando com essas duas novas facetas do tempo. São tempos de produção distendidos, são tempos de produção não ”estandardizados”, não industriais, e na fatura dramatúrgica interna a gente percebe uma duração temporal que trabalha numa lógica distinta da dramaturgia eficiente clássica. Outra coisa que me parece importante, apesar de ser um clichê pasteurizado do cinema contemporâneo, é o hibridismo. Ele ajuda a gente entender um pouco pra onde o cinema foi. Isso tem a ver com o digital, porque as primeiras gerações de câmeras digitais tinham uma textura menos rebuscada, estetizante, menos ligadas ao que a gente reconhecia como cinematográfico, dos anos 90. Majoritariamente, porque já haviam tido incursões prévias nesse formato. Mas a partir dessa época já são feitos filmes, longas, com endereços para festivais, etc. Então o digital se torna uma espécie de textura do tempo. E é até hoje. Mas esse digital do começo dos anos 2000 já tinha a marca da crueza, se distinguia do que conhecíamos como cinema. Uma percepção da época foi ter essa crueza associada com ”realidade”, com menos intervenção e manipulação, que a imagem aderem mais aos acontecimentos, se parecia mais com o que víamos com os nossos olhos crus. Isso tem a ver com uma espécie de ”paixão pela realidade” que o cinema contemporâneo desenvolve e leva até quase virar um sentimento religioso, uma devoção pela realidade, pelos fenômenos, pelos acontecimentos, quase puros, sem moldura na narrativa. Essa paixão faz com que o cinema tenha que lidar com um modo de produção e com uma textura de imagem que se parece mais com o que vemos fora das salas e telas. Acho que daí nasce esse desafio, dessa relação do cinema com a realidade, que já vinha desde Bazin. Uma das formas de renovar essa ligação é chamar de hibridismo. A gente tem muita coisa forte, talvez boa parte do melhor do cinema contemporâneo, foram feitos por cineastas que encararam o desafio então de reenquadrar a questão da relação do cinema e imagem com a realidade. Reenquadrar a questão da manipulação e captura. Isso está no cinema dos filipinos, do Pedro Costa, pós Kiarostami-Makhmalbaf do cinema iraniano, e não que tenha a ver diretamente, mas não é tão estranho a precariedade da filmagem do Hong Sang-soo e os insertos estranhamente documentais do Apichatpong. Tudo isso pra dizer, por essas questões, pela minha forma de mapear essa paixão pela realidade do cinema contemporâneo, conduz ao termo do hibridismo, que é uma nova forma de encarar esse desafio ancestral do cinema, que é como encarar ou deformar o real em imagem. A tecnologia ajudou a revitalizar a questão. Inclusive dá até pra dizer, pela centena de filmes feitos assim, que o ”doc fic” já virou até uma espécie de gênero, de standard. No nível da produção, o não standard quase virou standard, industrial, modelo. No meu trabalho, eu sinto esse desejo, essa febre de recolocar, repensar o real em imagem digital. Falando de outra questão, essa mais polêmica, mas sinto que no cinema contemporâneo existe uma adesão e paixão pelo fragmento, pelo estilhaço. E não fragmentário no sentido experimental, não estamos falando de (?) Tscherkassky, to falando do fragmento como estrutura dramatúrgica. E eu associo, pessoalmente, a outra marca do contemporâneo, que é a dramaturgia do mínimo. É uma adesão do pequeno, do falar da sua própria aldeia, uma recusa às construções generalizantes, uma desistência de pintar a tela mais ampla. Acho que essas duas coisas se comunicam. Há uma espécie de cansaço das figurações totalizantes, há um cansaço da alegoria ampla, e isso faz com que. de alguma maneira, conectando com tudo que estava falando, faz com que o contemporâneo seja entendido como o cinema da vida, da vida como estilhaço, entendida como acontecimentos soltos e difusos, não como a estória bem encadeada, não como o romance, como aquela estrutura moderna totalizante. Entendo como um conjunto de estilhaços, de fragmentos. Eu também associo isso com o elemento dramatúrgico contemporâneo, que às vezes vai pra forma de produção, sejam filmes feitos ao fragmentos, as cenas independentes, que não se comunicam ou deixam nada as outras, outra lógica narrativa, estações que não se conjugam num destino lógico. Não é um percurso lógico, uma estrada. Juntando todos esses aspectos, dos filmes feitos há muito tempo, sem a economia da eficiência, fragmentados, com cenas distintas, com uma recusa pela alegoria ampla. Meus filmes foram feitos assim, com essas características. Muitos dedicados à infinidade da vida, aos flashes cotidianos. Acredito que através desses fatores, do falar da aldeia, possa surgir uma nova figuração, ou pelo menos uma que seja fiel ao tempo que a gente vive.
JG: Já que você falou nele, assistindo A Vizinhança do Tigre (2014), percebi vários paralelos entre o seu cinema e o do Hong Sang-soo. Principalmente em relação a economia dos planos, o naturalismo da encenação, trabalhando com pequenos momentos fragmentados, frestas reveladores de uma realidade. Como você encara a relação entre cinema e realidade, documento e fragmento, de exibir uma realidade pouco conhecida?
AU: Essa febre de realidade do contemporâneo, de botar o cinema como esse lugar da verdade, encarando esse desafio. Também existe o lado de uma resposta a espetacularização e inflação das imagens dos anos 80 e 90 pela televisão e publicidade, além da nascente relação do espetáculo com o digital, este entendido como imagem altamente manipulável e moldável aos interesses de quem a produz. É um gesto de resposta do cinema de aderir ao digital a essa crueza, ao tempo real, ao não-dramatúrgico, à textura da imagem não estetizada, principalmente no começo dos anos 2000. Sobre a ficção, quando existe o desejo de fazer imagens tocadas por esse ”senso de verdade”, isso pressupõe repensar o que ela é, colocá-la em outro lugar, no lugar agora ”limitado” pela realidade. Diferente de antes, com a noção do autorismo norte-americano, aquele pensamento quase infantil do criador e muito mágico, do artista que tece um mundo feito por homens e máquinas, tudo isso é colocado em cheque no cinema contemporâneo, onde a ficção nasce da fricção com a realidade. Agora a ficção não nasce só da cabeça do diretor, e sim de personagens, situações e diálogos pensados e gerados a partir de condições claras de realidade. Pessoas que tem existência fora da tela, locações que não são alteráveis e manipuláveis pelo diretor e diretora, sabe? Isso faz com que a gente repense a ficção e a recoloque, agora em outro lugar, com outros fatores. Outra coisa, e essa eu acho problemática, esse reenquadramento da ficção atende a uma fadiga meio pós-moderna com a arte, com o artista, com a autoria, com essa potência do autor e da criação, sabe? Então a resposta a esse campo do poder absoluto do artista e do autor é o mínimo, a outra ficção, um novo diretor, este mais humilde, menos onipotente que o anterior. Isso tem as suas implicações positivas e negativas, vai de cada um. Mas eu associo isso ao lugar de discrição do cinema contemporâneo. Não é um cinema do máximo, do Schrader, do Coppola, da opulência, do excesso. É o contrário, é o cinema da concisão, não só estética, mas com tudo isso que eu disse: colocando a realidade como fator decisivo pra que as estórias sejam geradas e com a fadiga da potência do artista. Acho que essa é a problemática. E atualmente me sinto fatigado dessa descrição, desse minimalismo. Sinto falta daquela crença infantil na potência da ficção e do cinema.
Rafael Miranda: Sua definição de contemporâneo fica evidente, no teu trabalho, com os atores-personagens. Num filme como A Vizinhança do Tigre isso é claríssimo. Pra mim, eles são o aspecto mais marcante da sua filmografia. Como é seu processo com a direção de atores?
AU: Boa pergunta. Encaro como uma espécie de dilema, não é algo muito bem resolvido na minha cabeça. Essa verdade contemporânea que eu falei, não acredito que ela possa ser atingida sem manipulação. Não acredito no registro puro, pra mim é preciso construir. Desde a escrita até a encenação, meu objetivo é construir. A questão é como atingir o ponto exato de construção, trilhar o caminho de revelação de uma verdade. Como contemporâneo, tenho a noção que essa construção tem um limite: a realidade que me disparou o desejo visceral de fazer o filme. Sem falsear, mas manipular, no sentido positivo. E a cada filme eu tracei caminhos e atingi pontos diferentes que me satisfizeram, entre a revelação e a construção. No Vizinhança, a minha dinâmica de criação com os atores foi de maneira que eles completassem as ideias. Deixando mais claro: a medida entre construção e revelação que começou a aparecer nesse filme, com os lugares e atores, corpos e espaços reais, depende primeiramente de eu moldar e filtrar de acordo com a minha subjetividade. Mas esse meu desejo só vai pra tela quando é completado por eles. Eles respondem ao que eu propus. Basicamente, a maneira que eu fiz os meus filmes até hoje, o Vizinhança, o Arábia e o Sete Anos, são filmes completados pela realidade dos corpos e lugares que eu escolho filmar, mas eles só completam o que eu sugiro, e eu só sugiro a partir deles, então é uma espécie de ciclo: eles só disparam o que vou imaginar, mas essa imaginação só se realiza a partir do momento que eles completam o que eu imaginei a partir deles… uma espécie de palimpsesto, de ciclo. Mas há aí uma espécie de ponto de encontro que ocorre a partir de um encantamento com algo que existe. Mas sem a minha subjetividade isso que eu reconheci como forte jamais virará imagem. E pra isso isso que eu percebi também deve participar da representação.
RM: Há vários aspectos que se fortalecem por toda a sua filmografia. Um deles é a recursividade, a matrioska: a estória dentro da estória. Qual a importância desse aspecto na narrativa?
AU: Sim, isso é uma preocupação. Me desculpem pela citação, mas gosto muito de literatura, e sou especialmente pirado em um poeta português chamado Al Berto. Tem um verso dele que diz ”escrevo aquilo que posso…”. Sempre me encantei muito por essa sentença, como alguém que quer fazer arte, pra ir até o limite da pessoalidade, fazer aquilo que eu posso. Aí está a força daquilo que a gente produz, seja escrever ou filmar, pois ali fica plasmado o que somos, trazer algo de nós pro mundo ou do mundo pra gente. Em todos os meus filmes eu fiz o que podia, e esses processos vão até o limite do esgotamento. Com os outros filmes eu quero completar esse esgotamento que só outro filme pode fazer, porque com o mesmo filme já não é mais possível. Então a resposta desse sentido de completude, de continuar algo insinuado no filme anterior, só está em outro filme. Então, o que está sendo completado? A minha resposta é a literatura, a palavra, um diálogo com a literatura. Inclusive acho que Sete Anos é o meu filme mais literário, com esse aspecto pensado em outra chave, não tão evidente quanto na do Arábia, por exemplo. E de fato, há isso que você falou, dos filmes se intercalarem. Já disse e repito, John Dos Passos é uma grande influência, uma grande paixão. Sempre quis fazer filmes como ele escrevia os livros dele. Isso já tava de alguma maneira no Vizinhança, por ser um filme coletivo, com vários personagens, cada um com uma importância e tempo de tela. E também por ser um filme devotado à aliança criação-manipulação daquele bairro. O Arábia já segue o desejo de explorar outras coisas, como a ficção mais contundente, com palimpsestos, com essas estórias que escondem outras estórias, que se desenrolam e se revelam como num fio de lã. Isso passa pro Sete Anos em Maio também.
JG: O Bressane disse que ”Todo filme é o resultado estético do seu processo de produção”. Você pode detalhar como é o seu processo de pré e pós-produção?
AU: Gosto muito dessa frase do Julio. Nem sabia que era do Bressane. Eu concordo, sinto o cinema guiado por esse pensamento. Foi decisivo, em todos os filmes, que pra eu chegar na imagem que eu queria chegar, tinha que achar o método de produção justo. A imagem da periferia que eu queria ter no Vizinhança, a imagem daqueles rostos, corpos e espaços, que era o contrário, uma revanche dos favela-movies brasileiros espetacularizados, eu sabia que só ia conseguir chegar nessa imagem se fizesse isso de maneira distinta que essas pessoas fazem filmes. Então pra mim o modo de produção e a estética tavam atrelados ao meu modo de produção porque é assim que eu vejo cinema. Isso pra mim foi uma lição do cinema contemporâneo, especialmente do Pedro Costa. É um sujeito incontornável da história do cinema, não só do contemporâneo como da história do cinema. Mas nossa, pro contemporâneo ele é quase um sacerdote, há certo perigo aí também. Mas é preciso reconhecer a força do trabalho do homem. Em outros também. E o que eu reconheci nesses artistas é que modos de produção diferentes produzem imagens diferentes. E o meu jeito de encontrar esse balanço, de filmar a periferia, esse tópico ancestral do cinema brasileiro, tema fundamental pra entender o país que a gente vive, uma nação que busca sofisticação em meio a um mar de miseráveis. Entender que a nossa coexistência entre um anseio de ocidentalização e a ordem geral do capitalismo simultaneamente a uma bolota de pedra enorme chamada escravidão, pobreza, exclusão, que carregamos indelelvemente, entendendo que tudo isso é parte não só do país como das imagens que eu ia produzir, eu busquei uma maneira de produção que pudesse construir uma imagem que não referendasse a nossa miséria ancestral. E o modo de produção que eu busquei foi um de abraço da realidade, de diminuição do potencial de manipulação, no sentido perverso do cinema, e de tentativa estética, sem assistencialismo, de diminuir as distâncias entre oprimidos e a imagem do cinema. E a minha maneira de botar tudo isso na mesma conta foi de fazer filmes mais precários, mais pobres, que dependem mais do diálogo com as pessoas, recusando o sistema industrial e economia da eficiência, com tempos dilatados, abertos ao erro e que negam a imagem espetacularizado. Essa foi a minha maneira de produzir imagens, afinal o Brasil são imagens! De alguma maneira o problema brasileiro é um problema de imagens, até hoje, fazendo um salto pro atual, em que 2022 o nosso país é dividido em Lula e Bolsonaro, ou seja, dois tipos de cinema, dois tipos de imagens, e a gente precisa pensar a problemática brasileira como uma problemática de imagens. Seria nefasto um país esquecer e não enfrentar nossas imagens pelas próprias imagens, mas é preciso difundir que se o problema do Brasil é uma questão também de imagens, é preciso entender como essas imagens são produzidas.
RM: Você disse que o Brasil tem dois candidatos em 2022 e que ambos possuem um tipo de cinema. Você poderia dar exemplos de imagens e/ou filmes lulistas e bolsonaristas?
AU: É ótima, a sua pergunta, pra ilustrar essa questão pelo cinema. Antes disso, falando de correspondentes cinematográficos fora do cinema, de imagens, e todos os corpos e pensamentos que cada um representa: Bolsonaro se comunica por lives, num registro que talvez seja anti cinematográfico, enquanto o Lula ainda é um candidato do cinema. O Bolsonaro é da internet. É um sujeito do apartamento, das redes, da recusa pelo espaço coletivo. Enquanto o Lula é o sujeito da praça, do encontro, da convivência e diferença, da narrativa, sua história é épica. Uma espécie de Davi que vai suplantando os Golias do capitalismo pra chegar no ponto mais alto do poder, enquanto o Bolsonaro é uma espécie de Golias reverso, porque ele é o homem sem qualidades e um sujeito absolutamente desqualificado, que consegue atrair e comungar um séquito de pessoas ao redor dele justamente pela sua ausência de qualidades, e com isso conclamar ”A maioria das pessoas não tem qualidades, portanto somos a maioria! Nós somos os iguais, os comandantes dessa nação. Podemos ser tacanhos, podemos não ter bons empregos, nem sermos acadêmicos nem estudiosos nem jornalistas, mas nosso conhecimento é tão válido quanto qualquer um. Mas somos verdadeiros. Nós somos o Brasil.” Existe uma apoteose do homem comum no bolsonarismo, que evita as distinções e as qualidades. O Lula é o contrário, por ser considerado sem qualidades, subalterno, ele adquire essas qualidades ao ir subindo, discursando em universidades, tudo isso são vitórias, mas no sentido antigo, que reconhece essas instituições como válidas. O que talvez o bolsonarismo mostra é que muitas pessoas estão cagando pra honoris causa e pra Sorbonne. Mas voltando, existe uma diferença de imagem e narrativa nos mundos que os dois encarnam. Em termos cinematográficos, eu nunca tinha feito essa comparação, então vou pensar muito a quente, o Bolsonaro é um sujeito anti cinematográfico, da performance, da sketch. Quase teatral, resgatando um teatro de arena. Enquanto a história do Lula foi contada pelo cinema, pelo Leon, ela parte da narrativa do cinema. Isso é parte da história dele. Como o Bolsonaro recusa tudo que o conhecimento criou, ele também recusa o cinema, ou concebendo-o como algo doutrinário. E a direita brasileira é muito grotesca, muito ruim, em tudo, em administração, de estética, de pensamento, é um bando de operador de capital. Não conseguiram nem criar um diretor, um republicano. Jamais conseguiriam criar um Clint Eastwood, jamais conseguiriam com a contradição e poder que um Eastwood tem. Contraditoriamente, a melhor representação de Bolsonaro no nosso país é dada por pessoas que não são do cinema. Como o Cinema Marginal. Aquela era da boçalidade, de representação do poder grotesco, canhestro, circense, de elite entre e grotesco e o caricato que o Cinema Marginal apresentou, com personagens que grunhem como porcos, gritam desmedidamente, espécie de glutões e brutões atrás do paletó. Pra pensar o Bolsonaro como alguém positivo a direita teria que fazer filme bom, e não faz. Eles não sabem fazer cinema. Nem sabem escrever.
JG: Falando em Cinema Marginal, a história do cinema brasileiro está marcada por subversão, por um senso estilístico de repensar influências, desde a semana de arte moderna e a bossa nova até o Glauber reimaginando os faroestes do Hawks, sempre existe uma reestruturação radical. Mas isso diminuiu muito, pós-retomada. Muitas vezes sinto que os filmes são feitos já visando um padrão de festivais internacionais. Não sei se você concorda com a premissa, mas a que você acha que se deve esse enfraquecimento do cinema brasileiro de uns 30 anos pra cá?
AU: Eu concordo. Sobretudo comparando com os nossos heróis estéticos, com todas as suas transgressões formais. Mas acho que é uma questão com muitos aspectos. Essa radicalidade diminuiu no mundo todo. Essa pasteurização e homogeneização da arte do cinema é geral. Isso pode ser visto como uma espécie de fadiga geracional com o que a radicalidade significou antes. De repensar, de propor que o cinema tem que fazer outra coisa, com uma radicalidade presente no tempo morto, em outra dramaticidade, etc. No começo, essa foi a resposta a radicalidade, ou a própria radicalidade, do cinema contemporâneo. Se é convenção hoje, é outra questão. Também temos que entender que todo o circuito de cinema independente hoje tá sendo deglutido, completamente, pelo grande capital cinematográfico, ainda mais recentemente com as grandes plataformas de streaming. Então os circuitos de produção de cinema ficam mais integrados, sob um aspecto: o da hiper importância dos festivais. Eles não são apenas eventos de exibição, eles viraram os eventos, viraram o mercado. A maioria dos filmes independentes do mundo são vistos só em festivais. Se a gente fosse contabilizar o público dos filmes independentes, e a coisa tá tão ruim que a gente pode até colocar Paul Verhoeven aí, os públicos em festivais são muito maiores do que comercialmente. Então os festivais são a grande janela de exibição e de existência do cinema independente hoje. Mas a questão não para aí. Os festivais também são eventos de indústria. Então são onde muitas vezes acordos são negociados e fechados, além de apresentados pra financiadores. E, na parte final, é onde projetos são gerados, porque quase todo grande festival agora também tem laboratórios, workshops, em que os agentes de mercados são as instâncias selecionadoras de projetos a serem financiados, então a coisa toda toma uma proporção viciosa em que todo esse mercado de festivais está decidindo quais filmes vão ser produzidos ou não. Isso vai gerar sim uma demanda de homogeneização. Isso determina que o olhar do comprador decida qual tipo de filme vai ser feito. E como vão ser feitos. Isso é pernicioso. É preciso lutar contra isso, pra fazer filmes como se quer, pra não fazer algo que só atenda a uma demanda do mercado. E não importa se o mercado é artístico, se é bom crítico ou não, porque o sistema opera independente das qualidades individuais dos seus agentes. Ele opera pra delimitar as ideias e os modos de produção. Vai decidir como tudo vai ser feito desde o começo. Se tudo vai desaguar nos festivais, eles vão decidir como os filmes vão ser feitos. É isso. Aí a radicalidade vai se diluindo. Os agentes de mercado não querem risco, querem previsibilidade. As instâncias privadas (e as públicas!), hoje, visam rechaçar o risco. É fato que uma parcela do cinema brasileiro faz filmes como os festivais querem ver. Mas fazem isso porque são gerados dentro desses festivais. Existe sim, hoje, uma grande eliminação do risco no cinema brasileiro, mas é importante dar um contexto amplo pra entender esse fator. Mas há um outro tipo de demanda, que eu ando pensando muito, que é a exigência brasileira por radicalidade. O que diferencia o brasileiro, e isso me veio conversando com um artista boliviano que me disse que o país dele nunca foi moderno em nada. Mas o modernismo brasileiro, que representa dialogar em pé de igualdade com o grande capital, e que a gente possa dar contribuições e processar o que o centro do capital produz, e que isso só pode ser feito pela via da vanguarda, e que pra ter esse protagonismo, pra ultrapassar esse atraso histórico, precisamos estar sempre na frente. Essa missão é vista como nosso destino manifesto. Eu fico pensando o quanto isso também não é uma espécie de maldição brasileira. O quanto essa demanda por ser mais vanguardista que o capital na periferia dele não nos prejudica. Estar a frente do centro pra suplantar todos os anos de atraso que o capitalismo impôs. O que gera que a arte brasileira crie uma espécie de igreja com o modernismo. Parece que nunca vamos superá-lo. Parece que nunca vamos gerar uma nova Lygia Clark, jamais vamos ter um novo Bressane, ninguém vai chegar aos pés do Sganzerla. Não estou dizendo que eles não eram geniais, eram e muito. Eram muito melhores do que a gente. Quem me dera fazer um Sem Essa, Aranha (1970). Não tenho capacidade. Mas parece que na arte brasileira temos exemplos santos, uma cristalização do destino manifesto brasileiro, que é ser vanguardista, que é dar uma resposta nova ao capitalismo. Penso no quanto isso também não pode ser uma quimera. No quanto isso mais que nos libertar pode nos aprisionar. E fazer então com que a gente tenha toda uma arte que seja decalcada dos tempos em que o Brasil correu junto das grandes potências. Então vejo toda essa questão numa via de mão dupla. É preciso entender que a ausência de risco e experimentação no cinema brasileiro é um sintoma mundial. Todo o globo rechaça a experimentação porque as instâncias de divulgação dominam a produção. Elas querem atender demandas, não lidar com arte. Mas é preciso entender que talvez o cinema brasileiro quer cumprir um destino manifesto que a gente outorgou pra nós mesmos. E se formos diferentes? E se não quisermos ser modernos? O que isso pode produzir? Não sei, mas me pergunto. A falta de risco me irrita, mas me pergunto se o problema não está na própria pergunta.
JG: Tenho visto muita coisa do James Gray, e me surpreende o quanto ele destoa de figuras como Kiyoshi Kurosawa e Hong-Sang-soo, apesar dos seus traços modernos, com a sua insistência em reinterpretar e reafirmar toda a literatura e cinema clássicos. A gente se encontra num ponto, como no maneirismo, onde não há muitas saídas de criação difusas. Eu penso que talvez seja um momento pra repensar quais são os caminhos possíveis pra seguir, né?
AU: Concordo. Talvez a gente possa reenquadrar a questão no nível global, humanitário. Talvez o problema realmente esteja na pergunta. A pergunta é exigir que a questão da arte seja linear, que ela progrida, diluindo as formas consagradas. É questionar a premissa que o valor artístico tá relacionado a originalidade, a hiper personalidade… Talvez seja isso, estamos diante, novamente, de um problema na pergunta. Essas premissas do modernismo, talvez elas que sejam mais limitadas que as criações. Mas um troço que me irrita bastante é o regressismo. Essa ideia de voltar às formas básicas. Mas descontando isso, a gente tem que relembrar certas questões. Eu adoro uma frase do Resnais, em que ele disse ”eu não troco a minha emoção por nenhum conceito”. E tem uma entrevista recente do Rodrigo Naves que ele condena que todo conhecimento esteja ligado ao livresco, a algum conceito e elucubração, que justifica a obra de arte. Ele quer um retorno a emoção e a sensibilidade. Odeio o regressismo mas alguns regressos me parecem importantes: a emoção e a sensibilidade despertas, sem nome, quando diante da obra de arte, essa eu acho importante. Não quero dizer que só há emoção quando há estória, ou quando o filme é divertido, ou quando os personagens da estória são tocantes e edificantes. Não. É possível sentir emoção em um filme do Tcherkassky. Isso é cinema. Temos que nos livrar dos atrelamentos de pressupostos. Como o que a arte sempre caminha pra frente do consagrado e implode o clássico, também é preciso dispensar o atrelamento da sensibilidade a uma forma específica. Como se só o clássico tocasse a sensibilidade. Estou entre os dois caminhos. Contra uma ideia de que pra frente é sempre de um jeito e também contra de que a emoção só se manifesta de um jeito. Busco algo que a gente sente mais do que entende, e isso não tá ligado a nenhuma forma específica de cinema não.
RM: Deixando um pouco de lado o objetivo “panorâmico” por um instante e retornando ao interesse pela recursividade da sua filmografia, eu vejo que isso é aprofundado no Sete anos em Maio pela representação política tanto direta (com o monólogo do ator-personagem narrando suas vivências) quanto alegórica (pela brincadeira do vivo-morto). Como você lida com as questões políticas em seus filmes?
AU: Difícil questão. Eu tenho a resposta dela até certo ponto. Pensando no Setes Anos, eu concordo com essa leitura do filme, mas sinto que dá para dizer que são quatro representações políticas e talvez da mesma estória, dessa reencenação, que a gente chama de psicodrama, mas eu chamo de reconstrução da tortura, lá no comecinho do filme. Depois a ponte entre o depoimento e o vivo-morto, que é um diálogo do Rafael com o Neguinho, algo mais teatral, ou seja, uma outra forma de tratar, um outro registro do filme. E não é o que eu queria desde o começo, não. Foi como o filme se revelou na melhor forma dele existir. Isso sim tem a ver com política. O filme foi uma espécie de tour de force com diferentes formas cinematográficas para abordar um acontecimento violento e suas implicações políticas com a imagem cinematográfica. Me pareceu a melhor forma de tratar política e imagem nesse filme. Um tour de force em busca da imagem mais justa, sem saber qual seria ela e muito menos se existiria de fato uma imagem que pudéssemos chamar de justa para representar um acontecimento tão atroz e grotesco, tão asqueroso quanto a violência que o Rafael sofreu. A minha maneira de representar foi com uma espécie de imagem possível, ou uma imagem que só é possível alcançá-la através de algum artifício, ou de uma representação explicitada, como na reconstrução que só pode existir na cabeça de quem vê através das palavras, como no caso de um depoimento, em que na verdade se persegue a imagem possível da violência. Já o caso do vivo-morto, como você disse, também penso que é uma espécie de reformulação alegórica do que aconteceu com o Rafael e o que acontece com a periferia brasileira. Mantém-se um tour de force por diferentes maneiras que o cinema tem em dar a ver a política. No A Vizinhança a política é a violência do Estado contra um jovem negro de periferia brasileira. De alguma maneira tudo isso se comunica com os meus outros filmes: é uma busca, uma tentativa de encontrar um ponto justo, o acordo entre uma intenção e uma percepção da realidade. Um desejo, também, de vocalização de um sentimento sobre a realidade e de um conclame ao desconforto. Isso para mim é fundamental em todos os filmes. Saindo um pouco do assunto, em todos os meus filmes existe um desejo de conclame ao desconforto. Eu sei que existe aí um limite tênue que podemos resvalar que é o sensacionalismo, a denúncia mera e simples. Eu não quero fazer isso. Mas sabendo que eu parto do desejo de conclamar o desconforto, sei que eu flerto com esse perigo, e tento fugir dele o tempo todo. A minha verdade é que a gente precisa entender que existe algo de errado, e sentir o errado como errado. E a partir daí eu penso em qual é a imagem que representa a percepção do desconforto, o que foi diferente para mim a cada filme. No caso do Vizinhança eu senti que um maior naturalismo, mas também deixando a mostra sua construção, cria uma espécie de zona indiscernível da construção e da exposição. Isso me interessou mais. No caso do Arábia, nos interessou (a mim e ao João) a exploração da palavra como condutor de consciência e fazer do filme basicamente um romance de formação de uma consciência, que tem a ver com o processo de dominação, de apropriação da palavra pelo subalterno. E no caso do Sete Anos em Maio uma espécie de mescla dos dois, pois o processo político tem a ver com a palavra – o Fael tomando a palavra é o grande gesto político do filme -, ele poder, com a própria voz, contar o que viveu. Coisa que a sociedade brasileira sempre lhe negou. Mas também é um processo de consciência por conta de um diálogo dele com o Neguinho, onde há essa elaboração sobre a experiência que é feita em frente a um semelhante. Uma cena que tem esse pé de sonho/pesadelo, compartilhado ali no vivo-morto que traz a coletivização de uma experiência particular, e que eu associo a uma espécie de tomada de consciência que o Arábia também tem. No geral, eu acho que tem a ver com a palavra, com o desejo de restituição da palavra àqueles que são silenciados, e o desejo de fazer com que o cinema reconheça como instâncias discursivas, de marcação, de uma fala, de uma personalidade, de um pensamento, tudo aquilo que não necessariamente é percebido como fala. No caso da Vizinhança é o rap, a pichação, o grafite. São formas de a periferia marcar a sua história no mundo, são formas de dizer. Se para falar essas pessoas precisam tomar o microfone na marra, o que eu sinto nos meus filmes é que juntos a gente tenta tomar esse microfone coletivamente, para fazer com que aquilo que não é ouvido possa ser ouvido, nem que seja por 90 minutos.
RM: Como você disse, no Arábia houve a co-direção com o João Dumas, mas no Sete Anos ele somente assina o roteiro, a direção ficou por sua conta. Como foi a experiência da co-direção e o que isso significa dentro do cinema contemporâneo?
AU: Foi uma ótima e difícil experiência. Bom, a gente chegou na codireção como uma evolução natural do nosso diálogo, da nossa amizade e pelo compartilhamento de desejos que por algum motivo se confluíram no Vizinhança. Eu o dirigi e fiz boa parte dele sozinho, mas o João foi um grande confidente, um parceiro meu durante todo o processo. Escrevemos o roteiro juntos, ele montou o filme comigo e com o Luiz Pretti, e foi a partir disso que nasceu a ideia de fazer um filme e compartilhar a direção. Não só porque éramos amigos, mas também porque percebemos que algumas coisas, em termos da nossa percepção política e desejo com o cinema, tinham a ver. Então decidimos gerar um filme juntos e acabou sendo o Arábia. A experiência da co-direção tem as suas maravilhas e suas angústias. É sempre bom ter alguém perto para poder dialogar, trocar, compartilhar, pois fazer um filme é um processo compartilhado, não necessariamente coletivo, mas que ao mesmo tempo é um processo muito solitário, por conta da hierarquia, por conta do sistema autoral, de como as coisas são organizadas. Ser diretor é viver uma espécie de dilema em ocultar ou explicitar essa solidão. Ao dirigir o filme com alguém essa solidão é compartilhada. Por outro lado, também é lidar com o limite de exercício da sua subjetividade. Não pode ser tudo só seu. As coisas são divididas e compartilhadas, o que alivia por um lado, mas aflige por outro ao precisar aprender a lidar com esses limites. Eu vejo a codireção como o mais alto grau da certeza de que o cinema se faz em contato com outras pessoas. Que fazer um filme é contar com talento, vidas, desejos e dedicações que vão além do diretor e do roteirista. E isso é importante demarcar. Agora… Ao passo em que sentimos a necessidade de compartilhar, existem outros processos em que a gente se sente mais à vontade concentrando as responsabilidades e decisões individualmente. No caso do Arábia, nós dois queríamos compartilhar e viver as dores e delícias do compartilhamento. Mas no Sete Anos e nas atuais produções do João, decidimos concentrar as decisões e as responsabilidades individualmente. Isso não corta o nosso diálogo, só reformula ele em outras instâncias. Do mesmo modo que ele colaborou, eu também busco colaborar. Eu, o João, o Luiz Pretti e o nosso corpo de atores e atrizes formamos uma espécie de grupo informal aqui em Belo Horizonte. Não é uma produtora, não é um coletivo, nem esses troços que saem na Folha de São Paulo e rendem retrospectiva em algum festival brasileiro. É só um circuito de trocas, afinidades seletivas, amizades que geram intercâmbios, diálogos criativos e, acima de tudo, trabalho. Confiando nos nossos olhares e nos dos outros.
RM: Considerando filmes que venham a ser realizados dentro da mesma faixa orçamentária que a sua, como você enxerga o futuro desse tipo de produção num Brasil pós-pandêmico? AU: Com pessimismo. Mas eu tento aderir a uma espécie de discurso que é muito comum e necessário para a gente não chafurdar na melancolia. O discurso de uma força incontrolável do cinema brasileiro. Tem muita coisa que foi feita e aconteceu recentemente que tem sua força, mas a gente tem que estar atento aos perigos. Vivemos correndo risco do fascismo, porque o governo Bolsonaro é um governo fascista, talvez até mesmo de inspirações e linguagens nazistas, o que é ainda mais perigoso. E esse governo coloca o cinema brasileiro em risco como coloca a cultura, a educação, a ciência, a democracia, tudo. Não tem como ficar imune, o cinema brasileiro convive o mesmo processo coletivo e geral de ter que se colocar contra uma ameaça forte e violenta. Talvez essa ameaça seja derrotada nas eleições de 2022, mas não significaria a sua derrota completa. Temos que entender isso como algo maior do que simplesmente uma administração federal e até mesmo maior que o seu líder. O bolsonarismo é maior que o Bolsonaro, e é uma consolidação de problemas e anseios violentos na sociedade brasileira que sempre estiveram por aí, talvez estivessem recalcados ou adormecidos, mas encontraram no bolsonarismo não só a sua legitimação e sua autorização oficial, como também a sua linguagem e imagem que eles conferem unidade e força simbólica para resistir e permanecer. Além disso, tem um perigo que decorre desse governo que é não reconhecer que o cinema independente é dependente de políticas públicas em todo lugar do mundo. Não existe mais um cinema como dos anos 60 em que o Sganzerla conseguia financiamento no banco nacional e Mulher de Todos fazia um milhão de telespectadores. Isso é impossível em qualquer lugar do mundo. O Paul Verhoeven não vai fazer um milhão de espectadores nem nos Estados Unidos. A realidade econômica de existência do cinema hoje faz com que o cinema independente se torne cada vez mais uma espécie de bricabraque de luxo, um divertimento restrito, uma experiência restrita. E por isso só as políticas públicas a nível global fazem o cinema existir, acreditando mais no seu potencial cultural do que o comercial. Estamos num momento do Brasil em que não há política pública para quase nada. Se existe é fruto da legislação anterior, não sabemos se ela vai continuar e se continuar será deturpada, o que sobrevive, sobrevive a duras penas. Então existe o perigo das políticas públicas para o cinema serem extintas. Sem política pública o cinema morre; e o que a gente tem como complemento desse cenário degradante é o mercado sendo tomado completamente de assalto pelas plataformas de streamings. Nesse sentido, o que eu vejo para o cinema brasileiro e sinto que é o pior, porque nos acostumamos, não somente nos anos de pandemia, mas antes mesmo do governo Bolsonaro, a falar que o cinema brasileiro vai resistir. A acreditar numa espécie de potência quase indígena do cinema brasileiro de nunca ser dizimado. Mas precisamos reformular um pouco a pergunta e dizer: qual cinema vai sobreviver? Esse cinema brasileiro independente, que arriscou outros modos de produção? Ou esse cinema que pouco arrisca a existência não-hegemônica, mas que abriu também as portas para ser produzido por mais mulheres, cineastas negros e negras, cineastas indígenas, cineastas não-pertencentes às classes privilegiadas do Brasil? Tudo isso pode acabar ou ser absorvido pelo cinema de mercado e ser vendido como revolução mesmo sendo a coisa mais comercial, careta e comum do mundo, dirigido por diretor e diretora negra. O nosso senso de transformação do cinema brasileiro foi recente (o que acho positivo), não estou dizendo que geramos obras geniais, mas geramos bons filmes que gosto e tenho prazer de assistir, e esse cinema só aconteceu porque existia uma concepção de que a cultura e o cinema era uma questão de Estado, de coletivo, e não somente uma questão de mercado. Esse processo de política pública integrado a uma transformação social ampla permitiu que gente da camada oprimida do Brasil começasse a fazer cinema, o que é uma raridade num país tão injusto e desigual como o nosso. E essa novidade não parou por aí, ela trouxe consigo novas maneiras de fazer cinema, outros processos, outros modelos de produção, um enfrentamento ao modelo industrial de produção e de feitura de filmes. E tudo isso é porque a gente tem como inimigo o hiper domínio das plataformas de streaming, que na verdade querem transformar o cinema brasileiro em mera mão de obra para produtos que são concebidos fora. A Netflix fez uma série sobre bossa nova no Brasil que a direção e o roteiro eram ingleses. O que é o brasileiro? Mão de obra. Não é cabeça, e não é cabeça só para assumir responsabilidade criativa. Jamais existirá uma abertura desses grandes conglomerados de streaming, que são a nova fase do capital cinematográfico, para aceitar um modo de produção que não seja imposto por eles. Jamais, isso não vai existir. Então há o perigo que essa nova fase do capital inviabilize o que o cinema brasileiro tinha de mais potente, que é o desafio ao sistema industrial de produção e a percepção que novas imagens, novas formas de fazer filmes eram necessárias. E por extensão, o perigo que vinha junto com os novos moldes de produção eram os novos agentes, novos rostos, novas pessoas, novas classes fazendo filmes e que foi simplesmente absorvido visando a propaganda. Botar gente que veio das camadas oprimidas para produzirem filmes que são a cara cuspida e escarrada do que os privilegiados querem. Isso para mim é nefasto e está sendo nefasto. Por enquanto a gente não tem associação de política pública com a nova fase do capital, mas eu fico com a pulga atrás da orelha: num eventual governo de esquerda, que assuma o país depois dessa destruição absoluta, e vê o novo Brasil, portanto vê uma nova economia do audiovisual, o que esse governo faria? Será que as políticas públicas vão promover ou ao menos dar uma brecha para que o não-hegemônico exista ou vai aderir a nova ordem econômica na qual o nosso papel é somente gerar mão de obra que vem comandada da gringa ou tentar produzir os mesmos produtos, espetáculos, mas agora com novos rostos e agentes. Tenho esse receio e é o que faz com que me pergunte: qual cinema brasileiro vai resistir?