ENTREVISTA COM JOÃO PEDRO FARO

Por J.E. Gama, Rafael Miranda e Bernardo Wendrownik

Faro é crítico e cineasta. Dirigiu, entre outros, Sombra (2021), Muriel (2021) e Extremo Ocidente (2022). Durante a entrevista, conduzida na casa de Bernardo Wendrownik, estiveram presentes também a designer Sofia Amaral e o artista Pio Piolho. A equipe da Imagem e Palavra agradece a todos.

Rafael Miranda: Em muitos dos seus filmes, tanto recentes quanto antigos, predomina a imagem em baixa resolução. Qual a importância que você vê nesse aspecto?

João Pedro Faro: Eu acho que a imagem em baixa resolução, na verdade, é o contrário do que a gente tenta fazer parecer que ela seja. Eu acho que ela é um preciosismo, uma espécie de embelezamento da imagem, mais do que uma imagem suja, feia ou escrota. Principalmente quando você também grava em baixa resolução, em 480p. Eu acho que o que a baixa resolução faz é tanto reconhecer como a maioria das imagens é consumida (pode ter certeza que 90% das imagens e vídeos que a gente vê hoje em dia estão em baixa resolução). Então eu acho que a baixa resolução acaba num engrandecimento do que a gente faz, porque ela faz, num plano, que menos coisas estejam aparentes num plano e que elas se diluam um pouco mais, entre si. Uma frustração muito grande, com pessoas que fazem cinema digital, e que vão fazer seu primeiro curta, seu primeiro longa, pessoas que tem uma certa cinefilia, um apreço por filmes de outrora, que têm uma imagem completamente diferente, sentem que não conseguem expressar o que querem porque a imagem digital não te apetece, não dá vazão a forma como você pensa cinema. Eu acho que muitas vezes isso acontece porque a imagem em alta resolução deixa claro muito mais coisas do que você gostaria, do que você tá pensando quando vai filmar. Então às vezes você tá filmando num UltraHD fudido, filmando seu curtinha, seu longa, qualquer coisa que seja, e você pega, sei lá, uma câmera 4K, e você enquadra as coisas de uma forma que você vai dar muita atenção a muitas coisas, porque tá tudo em alta resolução, e você terá um apreço muito menor pela construção do plano em si. Então, o que faz com que eu queira usar a baixa resolução, além de tornar todo o processo mais fácil, direto, rápido, orgânico e controlado por mim, é dar uma imprevisibilidade pras imagens. Então quando eu gravo em HD, parece que eu tenho uma certeza muito grande do que eu to fazendo, porque eu consigo ver tudo, conforme gravo, da forma que vai tá sendo gravado, e isso muitas vezes chapa o processo demais. E até porque cada vez que eu vou ver o filme, dependendo da onde eu vir, a resolução vai ter alguma relação diferente com o lugar onde tá sendo exibido, dependendo se eu vir no computador, na televisão… cada um uma coisa. Então dá uma imprevisibilidade pra construção de planos que na maioria das vezes eu tento que sejam muito específicos, fatiados e muito precisos. Eu tento buscar uma precisão no que eu vou gravar mas também buscando uma imprevisibilidade por si só. Isso é uma coisa que a película faz muito bem. A película pode gravar algo numa resolução inacreditável, porque é um processo químico, mas ela sempre vai gerar uma imprevisibilidade e um movimento muito diferentes, não importa o que você grave. O mesmo plano que você gravaria em película ou em digital HD, vão ter impressões completamente diferentes porque você sempre vai sentir que a segunda opção, o digital, está muito mais estático, muito mais chapado e muito mais imutável. E quando você grava em baixa resolução, como eu tento fazer, já vai ter um movimento constante das imagens, sempre vai ter muito risco, sempre vai ter muito granulado, não importa o que eu faça. Eu não faço nenhum tipo de correção de cor, nada, nos filmes que não são de arquivo. Então os que eu gravo, com a minha filmadora, me dá controle sobre o que eu vou gravar, mas descontrole na impressão das imagens. É basicamente isso. E aí o que eu faço é, no pós, aumentar o granulado, muito pouco, no Premiere, uns 5%. Porque aí é como se as linhas do quadrado do pixel ficassem mais… inconstantes. Então com esse duplo processo, sem desconsiderar o pouco pós, porque ele existe, mas tentando deixar as imagens o mais próximas do original gravado possível. É uma busca pela movimentação e por improbabilidades. Por um controle sobre o que eu gravo, e um descontrole sobre a forma como isso vai ser impresso.

Bernardo Wendrownik: Vendo Muriel, que é outro tipo de produção, de suporte, com uma DSLR, uma equipe maior, a gente percebe um flerte maior, mais aberto, com o cinema de gênero, do terror… sim? Não? Talvez?

JPF: (rindo) Espero que seja mais que um flerte!

BW: (risos) Sim, Muriel é um filme de gênero, Sombra eu acho outro tipo de filme. Mas eu quero perguntar como o gênero é importante, como ele tem texturas que podem criar ambiências.

JPF: Eu acho que os filmes de cinema de terror barato, os que eu gosto, sempre foram muito esteticamente pretensiosos. Mesmo filmes que as pessoas acham que não são, acho que sempre existe muito cuidado, muita precisão, porque senão as coisas não seriam da forma que elas são. Porque elas precisam funcionar sobre uma base estética e dramatúrgica que é muito diferente, muito única, do cinema de terror. Então o que eu acho, o que eu gosto de fazer, o que eu espero ter feito com o gênero, são filmes que carregam uma despretensiosidade quase insolente que o gênero carrega, mas muita pretensão formal e técnica, porque eu acho que os filmes que eu gosto funcionam, pelo menos na minha cabeça, por essa via. Porque são filmes que tratam do grotesco, de qualquer coisa sem nenhuma limitação, e não trata como se fossem coisas de outro plano, porque a base do cinema do terror é uma dramaturgia em que as pessoas ali estão dispostas a qualquer coisa. Todas as pessoas presentes em cena estão dispostas a qualquer coisa. E essa é sempre a tensão. A forma como o cinema de terror vai se enquadrar, tanto nesse meio termo entre o comercial e o autoral, e o independente, é o que sempre baseou o gênero. Eu acho que mesmo que se a gente pegar os filmes de terror que já eram de pessoas muito renomadas, que fizeram fenômenos culturais, qualquer Tobe Hooper, Wes Craven, são sempre os caras que trabalham à margem da indústria, sempre trabalhando à margem do processo, e estavam sempre fazendo filmes que são a sua própria forma, de formas completamente diferentes, e filmes que tinham uma preciosidade estética muito grande. E por preciosidade eu não quero dizer alguém com um cuidado constante com a beleza ou com a elegância, muito pelo contrário, os dois cineastas que eu citei vão pelo caminho oposto, mas eu acho que são cineastas que têm uma complexidade muito fechada e muito constante, e que isso é constantemente estético tanto quanto dramatúrgico, porque o cinema de terror sempre vai ter que ser as duas coisas ao mesmo tempo, porque uma faz com que a outra exista. Acho mais do que qualquer outro gênero, que pensa muito em texto, em gesto. O cinema de terror lida muito com figuras, silhuetas e ícones. E você tem sempre que lidar com isso, sem necessariamente querer comentar sobre o gênero ou fazer um estudo sobre ele, mas simplesmente porque você não tem muita escapatória. Então o que muda entre um filme como Muriel, que tem uma equipe, que tem preparo e que tem atores, e um filme como Extremo Ocidente, e eu considero que ambos serem filmes de gênero, não sei se todo mundo vai considerar dessa forma mas eu considero, é a partir dessa estética e dessa dramaturgia, que são tão custosas ao terror, ao cinema de gênero.

João Gama: Comparando, por exemplo, O Imortal (2019), que era você, uma câmera e o ator, com Muriel, que já tinha uma equipe, como você acha que os diferentes processos de filmagem afetaram o resultado final?

JPF: Eu sempre quero fazer filmes, independentemente da disponibilidade de tudo ao momento. Eu tento adaptar minha vontade de fazer filmes com o que eu tenho à mão. Acho que o processo de fazer filmes sozinho, sozinho mesmo, como filme de arquivo, que não lida com atores nem dia de filmagem, é bom pra você aproveitar dessa forma. Quando você faz um filme com uma equipe você tem uma responsabilidade inevitável com os outros. Isso é parte do que o cinema é. A gente não tem como fugir disso. Mesmo que você faça filmes sozinho você vai lidar com outros problemas. Mas os problemas do filme de equipe são as responsabilidades com os outros. Eu acho que isso é sempre o maior desafio, não importa o que isso manifeste. Existem pessoas que estão a disposição pra fazer um trabalho que é seu, que você pensou, e a todo momento você tem a pressão ou a impressão de ter que justificar aquilo, o número de pessoas, o tempo que elas estão gastando com você. Principalmente quando você faz filmes sem dinheiro. Como Muriel, que é um filme com orçamento muito baixo, que não pagou a equipe. Pagou comida, material, etc, mas ninguém recebeu salário. Aí acho bom gravar o mais rápido possível. Se bem que isso é algo que eu sempre gosto de fazer, não porque quero que elas acabem (risos) mas porque quero muito fazê-las, então não consigo fazer muitas outras coisas antes de acabar, e aí até acho que elas acabam muito cedo, como tem sido… Acho que o caso é você saber lidar com responsabilidades. O Muriel foi um longa que eu gravei no último ano do ensino médio e ele saiu depois que eu já tinha lançado o longa que eu fiz com três outras pessoas. Era uma equipe que tinha mais sete pessoas além de mim. Não o tempo todo e sem contar os atores, profissionais de cinema que trabalham com cinema o tempo todo. Enfim, eu acho que foi uma experiência de set como elas são. Eu conheço e frequento set de filmagem há muito tempo, já fiz outras coisas em outros filmes, assim como produção. E… é meio horrível! Mas é um trabalho bom, que eu gosto, mas é diferente. Eu, hoje, nunca faria isso sem ser em um filme no qual as pessoas estão sendo pagas. Eu acho que não é um caminho, mesmo que você esteja começando, fazer um filme com uma equipe enorme se você não pode pagar todo mundo, não tem motivo pra outras pessoas, nem você, estarem fazendo um filme com tantas pessoas na equipe. Quando a gente foi gravar o Sombra, que também foi um filme pensado pra ser gravado em um dia só, com uma equipe de duas pessoas, eu na câmera e o Bruno (Lisboa) e dois atores, que não eram atores e que nunca tinham estado na frente de uma câmera.

JG: Você acha que isso te dá mais liberdade?

JPF: Eu acho que são outras limitações. Isso que é bom. O que a gente tá sempre buscando, enquanto pessoas que trabalham com cinema, pelo menos o que eu acho que as pessoas deveriam estar sempre pensando, é buscar as suas limitações, buscar as limitações que façam com que o seu filme exista. Eu não penso essas coisas como uma forma de estar mais livre em relação ao processo, eu penso como uma forma dele ser mais possível. E aí eu vou ter outras faltas, dificuldades, perdas e vários outros ganhos. Acho que você vai estar sempre jogando com essas coisas, com o filme que você pode fazer. Sombra é um filme que não tem orçamento, ensaio ou preparo de ator, é um filme que foi pensado pra ser realizado com um processo muito específico. E desse processo você tenta tirar o seu filme. Então eu acho que você sempre tem que pensar qual a limitação que vai trazer um filme pra você. O Muriel foi filmado em 2019. Eu não tava pensando em fazer cinema e eu não achei que eu ia fazer outros filmes. Eu fiz esse filme porque queria fazer um e tinha amigos que tinham equipamento e poderiam produzir pra mim. Eu tinha o roteiro e a ideia, além de pessoas próximas de mim que poderiam fazer as outras coisas. Mas envolveu muita gente, não é exatamente o que eu penso em fazer hoje, mas é um filme que existe em outro processo e limitações.

BW: Algo que sempre me impressionou no seu trabalho é que, como o Vinicius Romero, não sei se você conhece, que trabalha com referências do cinema experimental, coisas que lembra-

JPF: Pra mim o Vini é o maior cineasta do Brasil hoje. De longe. Vinicius Romero é o cara que pra mim deveria ser a referência de todo mundo. É a minha! No cinema brasileiro, hoje, é a pessoa que eu mais tento… pensar próximo.

RM: Por quê?

JPF: Além dele estar fazendo cinema sozinho o tempo inteiro, experimentando diversos processos e recebendo diversos resultados, acho que ele se afasta do que temos muito no Brasil que é um cinema que não é nem industrial e nem independente direito. Você tem um meio, e você tem pessoas que precisam de dinheiro pra fazer filmes, e esses filmes precisam ser feitos e se justificar pra modelos de festival e de financiamento. O Vinicius não trabalha com cinema, ele estuda Engenharia de Transportes, mora no meio do Mato Grosso, no meio do centro-oeste, fazendo cinema sozinho e tem as referências que ninguém tem. Apesar dele seguir uma escola de cinema experimental, que é vasta, gigantesca e intocável até pra gente que curte essas porras e baixa na internet e tem Karagarga, a gente sabe que tem muito filme que a gente nunca vai ver porque são os caras só vão passar a película na casa dele. Ou só passa no museu. E eu acho que um cara fazer um cinema sozinho, sem nenhuma pretensão de integrar mercado nenhum, não tem coisa mais inspiradora que isso, mesmo que você queira fazer um filme narrativo, com um orçamento foda, de ficção, algo que eu quero muito, acho que mesmo que se você almeja isso não tem como você se inspirar mais do que num cinema como o do Vini, que expressa tanto som e tanta imagem, sozinho, com muitas pretensões mas sem grandes pretensões. É o equilíbrio perfeito que sempre fez o cinema brasileiro existir e que hoje eu sinto muita falta. A gente não tem cinema comercial, não existe, não passa filme brasileiro no cinema e a Globo não faz filme. Então não tem muito o que fazer. Mas mesmo os caras de circuito de festival, que fazem filme pra Cannes e Locarno, são caras que tão pensando num mercado, são caras que tão querendo se inserir, são caras que fazem filmes pra isso. E nem falando que exista grande vergonha nisso, mas é muito incrível ver um cinema que vai na contramão e que pra mim tá muito mais ligado com a tradição de filmes brasileiros que eu gosto e com a forma desses filmes, que é renegar qualquer processo. Então se você fizer um filme comercial você vai renegar aquele processo da sua forma, quanto se você for fazer um filme hermético, que ninguém vai ver, você vai ter que renegar coisa pra caralho. Então acho que são filmes com intenções muito individuais e expansivas. Os dois cineastas que eu citaria seriam o Vinicius Romero e o Felipe André Silva, de Recife. Este é um cara que faz filme há muito tempo, há mais de dez anos. Ele fez vários longas, todos nesse processo muito individual. E ao mesmo tempo é um cara que tem um pensamento de cinema que é muito rígido, muito calculado e muito sucinto. São as coisas que eu mais quero ver no cinema brasileiro. Não como os filmes do Vini necessariamente, mas que partam do mesmo lugar. Também do Felipe. São dois cineastas totalmente diferentes mas que conversam muito. O Felipe é um cara com interesse 100% em texto e estrutura, e o Vini é um sujeito de processos, fazendo filme congelando película, pintando película de guache… Ele comprou uma câmera analógica agora e ta fazendo de filme mesmo, ele faz filme digital… Tem uma coisa genial demais que ele faz: como ele viu muito filme que ele curte por CAMrip, de museu, alguém que foi lá e filmou o trabalho e essa é a única versão que a gente pode assistir, que tem na internet. Muitos efeitos dos filmes dele que eu não entendia como eram, são ele filmando a tela várias vezes. Então ele grava alguma coisa. Aí ele edita pra caralho no Premiere, senta o dedo no digital, fode a imagem inteira e grava a tela. Aí depois ele grava a tela gravada. Aí ele vai editando essas imagens até o ponto em que as coisas estão rasgadas. E não que sejam processos necessariamente inovadores, mas com certeza no Brasil não tem ninguém fazendo isso, poucas pessoas no cinema mundial fazem isso no nível de trabalho que o Vini faz e acho que poucas vêm de um lugar tão eufórico quanto o dele.

BW: Eles realmente são pessoas totalmente diferentes.

JPF: Sim cara, mas os dois tem uma coisa muito… escassa, que são as feituras em processos não só solitários como individualistas. Aí que está a magia. São duas pessoas que tem uma mão de ferro pra fazer cinema e estão muito preocupadas com os filmes que estão fazendo… e mais nada. O Vini bota a película no gelo, pinta, bota no cloro… E é um cara que vai ter que passar todo esse processo pro digital. Não tem jeito. Ele não vai exibir nenhum dos filmes dele em película, ainda. Os filmes do Felipe são filmes em digital que tem todo um cuidado muito específico com a imagem, e apesar dele trabalhar com profissionais muito qualificados, de alto calão, você vê que toda a dependência do processo tá nele. Isso que eu gosto de ver.

BW: Tava lembrando do Passou (2019)…

JPF: Que é um filmaço.

BW: E é totalmente sobre solidão…

JPF: Sim, mas isso é só a ponta do iceberg. Aí você entra nas obsessões deles. O Vini tem muitos temas, por mais que a gente fique pensando nisso de processos, acho que ele tem vários temas, referências muito malucas de poesia, de literatura…

BW: Até matemática.

JPF: De matemática, exatamente cara, o que me interessa no Vini é que ele não é um cara do cinema mas tá fazendo os filmes mais cinematográficos no Brasil hoje. Falo isso sem nenhum medo de errar. Não tem ninguém fazendo algo melhor que ele hoje, tenho certeza disso. E o Felipe é um cara completamente do cinema e tá fazendo filmes que destoam do resto, completamente alienígenas, que destoam do resto. Ainda mais que ele é de Recife, um dos lugares cinematográficos mais pulsantes, que recebem mais atenção, e o Vini é do Centro Oeste, onde praticamente, tirando o Getúlio Ribeira do Vermelha (2019), que é de outro lugar, não tem cineastas. Pra mim esses dois estão no topo. Além de serem amigos meus, eles me inspiram pra caralho, como um cara que gosta de cinema. (Faro pega o DVD de Onde jaz o teu sorriso? (Costa, 2001) de Wendrownik) Nossa! Que foda… O DVD mais legal que eu tenho é o do Cavalo Dinheiro (Costa, 2014).

JG: Legal você comentar do Costa, porque dá pra ver traços dele e do Shyamalan nos seus filmes. Como você trabalha a cinefilia no próprio trabalho?

JPF: Quando vou fazer um filme tenho certos filmes na cabeça e quando termino tenho outros completamente diferentes. Mas acho que isso é um problema meu porque gosto de filmes. Eu tento não lidar. Quando você faz um filme acho que você deve se fechar muito no seu processo e não pensar em mais nada. Mesmo que você esteja, conscientemente ou não, imitando outras coisas. Acho que o Felipe e os Vinícius, citando dois exemplos pra ilustrar o que eu quero dizer, são pessoas que tem referências muito firmes, mas que não necessariamente transparecem. Muitas vezes as referências que as pessoas acham que tão lá, no trabalho dos dois, não condizem com o que eles tão pensando. A cinefilia é um embate estranho à realização. Acho importante que cineastas sejam cinéfilos e que se interessem muito por cinema e que tenham referências diferentes, mas acho que o processo vai dizer tudo. As coisas que me inspiraram a fazer foram coisas que foram feitas de forma barata, de forma fechada. O Pedro Costa é um evento no cinema mundial, que realmente desloca a forma como as pessoas fazem cinema a partir de então. É engraçado a gente falar esse tipo de coisa porque o Dogma 95, que veio um pouco antes, é geralmente colocado como o sujeito que faz com que existam determinados tipos de filmes sendo que eu não consigo ver nada de Dogma 95 no cinema atual, como também não acho que exista gente que se diz inspirada pelo Dogma 95… E o Pedro Costa é o contrário, o que a gente mais vê hoje são compreensões de uma decisão que ele tomou há muito tempo. E eu gosto de individualizar isso nele, e acho que é inevitável e incontornável… Se você quer fazer cinema e não quer perder tempo. É você encontrar seu cinema de estúdio, seu cinema de grande orçamento com um processo mínimo… Não importa quanto tempo ou quanto dinheiro você tenha pra fazer um filme… Eu quero dizer assim, se você pode fazer um filme com mais dinheiro, e o Costa claramente podia, eu não sei como essa decisão, essa negação, não tocaria qualquer pessoa que quer fazer filmes.

BW: Acho que o Felipe tem até mais referências literárias que cinéfilas.

JPF: Sim, nos filmes deles existe uma estrutura que é muito literária, dá pra você levar pra esse ponto, mas ele contorna de um jeito que sempre é cinema.

BW: Ele costuma dizer que quando a gente é mais jovem, a gente sempre acaba preso nas referências, e que temos que acabar nos afastando, pra fazer o seu filme e não dos outros.

JPF: Eu acho que você sempre vai estar voltando a isso principalmente na boca do espectador. Dos espectadores críticos. Mas enquanto processo individual você tem que pensar no seu bagulho. O cinema do Felipe, por exemplo, parece bem mumblecore. Mas aí você vai ver o processo dele, é muito rígido, é realmente formalista, duro, filmes fodidos de forma. Bagulho de centro nevrálgico mesmo, de mise-en-scéne. Principalmente porque, e eu acho que isso é muito pouco levado em conta, mas quando você tá fazendo um filme que é muito ligado a mise-en-scéne, ou muito ligado a um tipo de encenação mais rígida, mais firme, você tem sempre que lembrar que isso também é uma questão de baixo orçamento, e que você não tem outras coisas pra chamar atenção pro seu filme, pra embelezar o bagulho, pra parecer que você tá fazendo outra coisa ou pra escamotear o espectador. Você só tem você pra fazer o teu filme rolar. Você e as pessoas, o número de seres que tão ali com você, mas quando você vai fazer um filme sem dinheiro, sem nada, você tem aquilo ali que tá ao alcance da sua mão. Então esse é o tipo de coisa que firma um filme, que hipnotiza uma sessão, que movimento um processo. E é engraçado porque, esse processo rígido, principalmente fazer um filme com poucos planos, tá ligado a você fazer um filme com baixo orçamento, você precisar fazer um filme com baixo orçamento e você querer fazer com que cada passo seu conte de maneira muito pesada pro filme.

JG: Você tem uma produtora, que é a MangBangVideo. Fala um pouco mais sobre ela, como é produzir e ter um sistema de produção, o que te possibilita.

JPF: Eu tive a sorte de encontrar amigos que tenham vontades próximas das minhas e gostos em sintonia com o meu, que tenham vontade de fazer filme. A MangBang é um grupo pequeno que tem um projeto de cinema baseado nessa possibilidade não-lucrativa ou ao menos não no primeiro momento. E é claro que isso faz parte dos filmes que nós queremos fazer, mas não sei se dá para dividir muito o que a gente gosta e a vontade que a gente tem, porque no fim das contas nós sabemos que é possível. Dá pra fazer filme sem gastar dinheiro; com uma filmadora acessível e simples; com duas pessoas, sem uma equipe gigante; com recursos de som específicos e que funcionem pro seu processo e que não precisam de uma pós muito fodida; que não precisam de distribuição, podemos exibir da nossa forma. Então é isso, nós tentamos fazer filmes com possibilidades imediatas baseadas no que a gente já curte. É importante ter esses gostos porque eles são a possibilidade. Nós não estamos fazendo nada novo, não estamos criando nada, só fazemos as coisas que curtimos e que a gente sabe que existe e que é possível… que dá pra fazer.

BW: Um pouco antes do lançamento de Sombra (2021) lembro de muita gente ter aproximado a MangBang com a Bellair.

JPF: (risos) Assim, óbvio que nós amamos esses filmes e também é óbvio que eles influenciam a gente a fazer qualquer coisa na vida, acho que não tem como escapar disso. Mas é engraçado porque, por exemplo, o nome da produtora “MangBang” eu botei em 2019 quando ainda não tinha visto o filme Mangue Bangue, do Neville D’Almeida, e foi justamente porque era um filme perdido, achei que ninguém viria a assistir e eu achava um bom nome. E também porque o Neville gritando (que era a única imagem que eu conhecia do filme) parecia muito o leão da MGM, então era como se fosse uma piada. Aí acharam lá, em Nova Iorque, não sei, em algum lugar tava perdida a fita de Mangue Bangue e o filme passou, eu assisti, foi exibido no cinema e agora tem na internet, todo mundo pode ver, é um filme extremamente acessível. Então acaba que a gente não consegue escapar de parecer que temos a pretensão de se filiar, é uma coisa que a gente não tem e isso é, de certa forma, nossa culpa. Tudo bem parecermos pretensiosos nesse sentido, mas com certeza é algo que a gente não tá fazendo e não quer fazer, não tem porquê. O Bressane e o Sganzerla já têm seus discípulos… Sganzerla menos, mas o Bressane tem discípulos diretos, até porque é um cara que ainda faz filmes. Mas o que sempre interessa pra gente são os processos baratos e isso está longe de ser exclusividade desses dois.

BW: Se bem que as coisas que você faz, não querendo comparar de novo, lembram muito mais o Jairo do que o Sganzerla, sabe…

JPF: (rindo) Pô, eu fico feliz!

BW: Seu trabalho com o extracampo, a guerrilha na montanha, os ruídos que vêm de fora, isso são coisas que me remeteram ao Bressane, mas… deve ser mais interessante fazer uma pergunta geral: como você trabalha o som nos filmes?

RM: Principalmente porque no Extremo Oriente você sente que imagem e som não são duas linhas paralelas, mas sim que elas se encontram de maneiras imprevisíveis.

JPF: Pelo filme ter um baixo orçamento o som é sempre um processo muito ulterior à filmagem, sempre. A trilha de vídeo e a trilha de som não se encontram, quase nunca. O som é esse um pouco mais, um pouco menos. No Sombra, exceto as músicas, todos os sons do filme foram gravados, do zero. São sons nossos. Coisas que o Bruno gravou com o microfone que a gente tinha. O som é sempre pensado como processo específico de cada filme, de cada projeto. Como o Sombra tinha muito a ver com música e com tempo de música, com dois sujeitos obcecados por música e mais especificamente obcecados por Black Metal Norueguês, eu acho que a precariedade do som, a forma como ele estoura sempre estava convergindo muito com a imagem que a gente tinha e eu pensei no som do Sombra o tempo inteiro como uma espécie de coisa só, que tinha suas interrupções, seus momentos musicais e tinha seus momentos musicais sem música, seus momentos de estouro, de barulho. Tanto que ele tem (o Sombra) uma coisa que o Extremo Ocidente não tem e parece que teria ou que poderia ter muito facilmente: o voice-over. O Sombra tem dois voice-overs que foram gravados depois com duas pessoas que não aparecem no filme. Uma delas é um ator interpretando um texto do Osugi Sakae, um movimentador político japonês dos anos 20, “Memórias de um Anarquista Japonês” seu livro. Enfim, era um texto literário lido por um ator e um texto improvisado lido por um não ator. Pensei nesses dois blocos de texto mais como intromissões sonoras do que narrativas, então era sempre um filme sem som e eu tinha um som para complementar. Às vezes o som colava com a imagem e às vezes não. E esse ia ser o processo, ainda que ele tenha tanto som do microfone, sons gravados, quanto sons da câmera, por exemplo um trecho do filme, um plano sem corte de várias luzes piscando e vários postes e árvores a noite, com um som muito forte de vento, e isso era um som direto da câmera… Mas às vezes as coisas vão aparecendo enquanto eu realizo a montagem, por exemplo, imediatamente, eu sabia antes que eu queria que tocasse uma música e então tocou um new wave, Eurythmics, que é o bagulho mais produzido e falso do mundo aí eu pensei “pra compensar o tempo que eu tô gastando com isso tem que ser com um tempo em que o som seja real, que a gente gravou e sem firula nenhuma”… Acaba que sempre parte dessa dicotomia, o Sombra é essa coisa que vai sendo montada num processo anterior, sempre pensando em como ele vai convergir ou divergir da imagem. No caso do Extremo Ocidente como é um filme que inevitavelmente lida com um cinema milionário, impossível, com filmes de grandes efeitos e grandes acontecimentos que nós não temos como fazer e que tentamos fazer de uma outra forma, por exemplo na sequência do bombardeamento na montanha, onde eu busquei muitos sons de banco de imagens, sons de um filme do Fuller em câmera lenta, e duas músicas, uma que acompanha o chá de fita (a música de abertura da Rua da Vergonha) e outra que acompanha o Canibau (a música do “antropofago” do Ruggero Deodato), ela toca duas vezes. Toda a trilha sonora do filme, tirando a música da abertura ou do rádio, são músicas em velocidade reduzida. Quando chega o Canibau é “Trenzinho Mineiro”, do Villa-Lobos, só que muito lento também. Ficamos buscando essas perversões de músicas, músicas orquestrais ou temas de outro filme numa forma de deixar tudo muito mais falso, porque a ideia do Extremo Ocidente é que o som constrói o mundo do extracampo. Eu queria muito que fosse um filme de universo crível, ficcional, verdadeiro, realmente comprar a historinha, comprar a ficção, comprar o universo que se passa… e nisso o som tem que fazer o extracampo que a gente não consegue fazer com imagens. Esse trabalho com som era uma tentativa minha de criar um estúdio, como se fosse um filme de estúdio, mas em que a parte falsa estivesse constituída no som. E ainda tem os sons gravados pelo Bruno, onde ele se concentra mais nos interiores. Enfim, então, enquanto no Sombra a tentativa era em deixar o filme o mais pé no chão possível e o mais próximo do que a gente gravou, mesmo enquanto divergisse, buscando colar com a imagem pelo erro do som, pela precariedade, pelo estouro, no Extremo Ocidente foi um processo de sons falsos e de coisas não produzidas por nós, na tentativa de criar uma artificialidade que fosse mais fabular.

JG: Eu sei que você tem um grande interesse por quadrinhos. Como sua figura vai para além do cinema, e a maneira como tanto os quadrinhos quanto o cinema possibilita caminhos criativos diferentes, com limitações diferentes, de que modo você lida com a expressão nessas duas vertentes?

JPF: Eu não me dedico tanto aos quadrinhos quanto ao cinema, mas é uma coisa que eu faço porque gosto e consumo muito. Certamente os quadrinhos influenciam os filmes, apesar da forma como produzo os quadrinhos não ter nada a ver com a forma como penso os filmes que quero produzir. O Extremo Ocidente parte muito de leituras de quadrinhos, principalmente mangás. Quando comecei a concebê-lo estava imerso em obras como Devilman, do Go Nagai, e Marcha Para a Morte, do Shigeru Mizuki, um mangaka que a partir do final dos anos setenta começa um trabalho mais autobiográfico sobre sua ida a guerra, onde perdeu um braço. Mesmo tendo referências de filmes de guerra, como os do Samuel Fuller, que vão voltar durante a produção em si, foi esse quadrinho que me fez querer realizar um filme protagonizado por um soldado, devido toda uma questão mais conteudista e temática característica do formato. Talvez, quando penso no processo de cinema, eu tenha muitos processos formais e questões de linguagem tiradas e refletidas a partir de filmes que gosto e coisas que gosto de fazer, mas as temáticas e os conteúdos estejam muito ligados a quadrinhos que estou lendo e vice-versa. Às vezes olho uma coisa e penso que parece um plano de quadrinho, como o final do Extremo Ocidente, que tem tanto um pouco de quadrinho erótico, sobretudo os do Magnus, como o Necron, quanto de cinema erótico, embora tenha lido mais quadrinhos do que assistido filmes do gênero. Mas isso não é muito consciente não. O Go Nagai lida muito com apocalipse, com certeza me inspirou a produzir um filme de fim de mundo, enquanto o Shigeru Mizuki me fez querer lidar com as imagens de um soldado.

BW: Você tem outras coisas além dos quadrinhos e filmes, como textos, críticas… Existe o interesse de explorar outros formatos de vídeo, como videoinstalação e videoarte?

JPF: Acho que existe uma má vontade da cinefilia com o cinema de museu, videoinstalação e videoarte… Para mim isso tudo é a mesma coisa. Videoarte é curta-metragem, e isso pode ser exibido de várias formas. Então, sim, gosto de gravar, editar e montar coisas, só acho que não iria atrás disso.Eu não consigo separar essas coisas. Gosto de fazer quadrinho porque gosto de desenhar e os consumo quase obsessivamente, só levo bem menos a sério do que o cinema e não me considero um quadrinista, nem me apresentaria dessa forma para ninguém, ao contrário de dizer que faço filmes, algo que realmente tento fazer. Acho que quem tem vontade de gravar vai fazendo o que aparecer, e essas coisas vão se manifestar de várias formas, mesmo que faça uma videoarte que seja um curta. Pedro Costa, por exemplo, um sujeito que nunca teve interesse em videoinstalação, nem achava que o trabalho dele tivesse alguma relação com videoinstalação, começou a produzir curtas montados com sobras de seus longas para serem exibidos em museus e festivais quando lhe fora oferecido esse espaço. Acho que você sempre estará fazendo cinema, é tudo imagem e som, você pode analisar ou encarar de várias formas. Eu acho bobagem, gosto de videoinstalação, gosto de videoarte, gosto de ver filmes no museu, gosto de ver filmes no cinema, e acho que essas coisas estão todas conversando o tempo todo e não tem como fugir disso.

JG: Nos quadrinhos você tem uma liberdade muito instigante para criar. Já no cinema, lida com isso de outra maneira. Como diferentes meios, com diferentes limitações e possibilidades, acabam possibilitando que você se expresse de maneiras diferentes?

JPF: O cinema lida com a realidade, o quadrinho não. O quadrinho é uma visão do zero e uma visão total do autor. São coisas muito diferentes…

RM: Quadrinhos, comparativamente, estariam mais próximos da literatura, né? Vão da mente direto para o papel.

JPF: Estão entre a literatura e as artes gráficas, embora não tenha como um livro ser um quadrinho. Acho que se trata de ter pretensões formais, técnicas e ficcionais com o cinema de baixo orçamento, e uma despretensão processual no sentido de produzir um filme lidando com a impossibilidade. E quando digo despretensão processual não quero dizer que o processo deva ser rígido, muito pelo contrário. Inclusive, o processo não depende disso. Estou falando do que te levará a fazer o filme e como será na hora que for ligar a câmera.

JG: Ontem você tinha comentado que o Pedro Costa faz filmes de estúdio em locação, e isso fez muito sentido na minha cabeça. Essa ideia de espaço, de como você se apropria dos espaços, e eu acho que isso nunca deixa de ser uma constante no seu cinema, e isso me fez pensar: existe algum trabalho mais minucioso na maneira em que você encara os espaços que você vai filmar?

JPF: Com certeza. Todo o diário de filmagem foi baseado em onde a gente ia a cada dia. E todos eles foram locais que eu já tinha escolhido quando escrevi. Isso tem a ver com fazer filmes com o que você tem em mãos. ”Ah, eles tem uma casa pra gravar aqui, que tem a ver com a ideia, ou eu invento uma ideia que parta dela.” No Extremo Ocidente a gente gravou no Porto Maravilha, onde ficavam as escolas de samba, mas hoje tá tudo abandonado, no centro do Rio, passando a Penha e o Rio Comprido. Queria gravar lá há muito tempo e aí no Extremo decidi que tinha que ser isso. Então como eu tô gravando no Rio, lugares que eu conheço há muito tempo, eu acho que sempre parte de coisas que foram pensadas anteriormente. ”Eu quero filmar ali’‘ começa tudo.

JG: Como isso se explica na decupagem, no fatiamento de espaços?

JPF: Gosto da janela reduzida, acho que ela ajuda a filmar uma coisa de cada vez, o que não quer dizer que só vai ter uma coisa em cena mas sim que eu vou estar me prestando a focar em um gesto específico, em uma formação específica, a cada plano. Gosto de fazer assim, e a janela reduzida ajuda muito a concentrar e fechar as coisas, a limitar… Acho que o filme vai sair quando você descobrir todas as limitações que você quer ter. Então não gravo tudo de uma vez, penso no que quero gravar nesse plano, que vai conversar com o próximo, etc.

JG: Sobre a direção de atores, como é o processo de dirigir amigos? Você não tem aquele distanciamento porque tanto o Miguel quanto o Daniel são pessoas próximas.

JPF: Estamos descobrindo isso ainda. Sombra foi pensado já com esses dois nomes em mente. Você não pode pedir para um ator ser muito além daquilo que ele já é. Eu sei quem é o Miguel e quem é o Daniel. São meus amigos, mas o filme se adapta a forma como me aproximo deles. Sombra foi um processo diferente porque, querendo ou não, estavam interpretando versões exageradas e descontextualizadas ou malucas de figuras já próximas deles, enquanto no Extremo Ocidente eles interpretam personagens, sem interpretação de texto, mas com interpretações físicas, mais dirigidas e específicas. É claro que isso apresenta diversas limitações, mas abre espaço para várias outras possibilidades muito bem vindas, como um maior conhecimento do que quero, a liberdade de conhecer o rosto que estou gravando e saber o que será entregue. O filme que fizemos, da forma que fizemos, foi baseado nisso. No segundo já estávamos explorando outras formas de tudo isso se manifestar. E a ideia para o nosso próximo filme é que eles tenham texto, personagens com falas e conflitos, experimentando, descobrindo essas limitações enquanto fazemos, e manter tudo isso no filme, porque acho que todos que fizemos até agora abarcam esse processo do erro, das lacunas e presenças. Miguel e Daniel são caras geniais e muito diferentes. O Daniel segue à risca tudo que peço, já o Miguel não. O Miguel não consegue ficar parado, ele faz as coisas de uma outra forma, e aí não é questão de repetir o take, é a questão de quem é ele e de como pode atuar agora, e é meu trabalho fazer com que isso faça sentido. Se trata de colocar isso na minha conta e ir se adaptando enquanto ele também se adapta. É um processo mútuo de criação. Não busquei amigos aleatórios, tinha duas pessoas com físicos específicos que me interessavam, pessoas que queria filmar, eu parti dessa vontade e agora já estamos indo para outras direções, eu acho. Eles querem ser desafiados, querem enfrentar outros problemas. O próximo filme será pesado em termos de texto, teremos muito a ensaiar. Acho que é isso que quero dizer quando falo sobre fazer filmes narrativos com processos experimentais. Lido com Sombra, e ainda mais com Extremo Ocidente e com o próximo como projetos 100% narrativos e quero seguir trabalhando com eles porque estão do meu lado, com processos muito interessantes, descobrindo as coisas conosco, e isso acaba expresso no filme. A improbabilidade que disse no começo, essa inconstância da forma como gravamos com o formato digital, acho que também obviamente se faz presente nesses dois atores. Eles são atores, não entendo muito isso de ”não ator”, acho muito escroto dizer isso. Eles podem não ser atores o tempo todo, mas no filme estão atuando. Gosto de lidar com eles como duas pessoas que vão atuar, e no filme sabem que vão atuar da maneira que puderem.

RM: Daria pra falar ”ator estreante”, mas ”não ator” realmente…

JPF: Sim, mas eu gosto de lidar com eles como duas pessoas que vão atuar, que tão atuando na maneira que eles podem, que eles conseguem.

JG: E você tinha falado do papel criador da câmera, de abrir um espaço pra câmera criar seus próprios processos, e acho que isso cria uma sacanagem maior ainda quando você pára pra pensar que existe um papel de criação mútuo ali, tanto de diretor como de ator, que vai criar coisas inesperadas.

JPF: Sim, sempre, mas acho que quando você lida com atores profissionais o processo é diferente. Porque aí a pessoa tem seus próprios processos, seus próprios estudos, suas coisas. Com o Miguel e com o Daniel não são ”questões de atores” que eles têm ao atuarem, tá ligado? São questões próprias, individuais, de quem eles são. Então você tá lidando com uma coisa muito mais crua e cujo resultado é sempre mais chocante. E gratificante! Acho que eles gostam, a gente gosta, e felizmente eles tão animados pra fazer mais, e coisas diferentes. Fazer filmes que eles tenham texto pra decorar, filmes em que eles tenham que falar num certo tempo, fazer certa expressão. No Sombra, eles são duas figuras não expressivas, isso faz parte do que os personagens são e do que o filme é. Já no Extremo Ocidente, o Mig tem uma atuação física muito diferente, né cara (falando com Rafael Miranda), não sei qual impressão você que viu o filme teve, mas eu quando revejo sempre tenho a impressão que ele tá seguindo as coisas que eu pedi, que direcionei, mas também traz algo muito pessoal…

RM: Pensei logo no começo do filme, quando ele está sozinho, com isso que você disse que ele não consegue ficar parado…

JPF: Demais, cara. Inclusive ele fala muito mais no Sombra né?

RM: Sim, com certeza. No Sombra era diferente…

JPF: É, no Extremo os personagens deles não tem qualquer conformidade com eles mesmos. No Sombra eles estavam mais à vontade, existe ali uma realidade muito palpável com o que eles realmente são. No Extremo ambos estão interpretando dois personagens que se comunicam pelo físico, em vez de texto, mas que depende dessa atuação. Foi esse o processo. Pro próximo o interesse é ver como texto e físico vão se chocar, tentar fazer um bagulho ao máximo, testar os limites. Qualquer filme feito sem recurso com interesse de gênero e experimentação sempre tem que realocar a dramaturgia do texto, mesmo que tudo isso ocorra e seja reinventada há muitos anos, mas sempre se lida com isso: realocar a dramaturgia. Ela tem que vir de outros lugares. No Extremo Ocidente ela está em convenções de gênero, numa situação fantasiosa, e no Sombra está na divergência entre som e imagem,exaltação de tempo. Bem, mas é isso, você tem que realocar a dramaturgia do texto e do personagem pra outras coisas. Não que em outros filmes a base dependa só disso, muito pelo contrário, mas quando você não tem essa base você tem que fazer ela explodir em outros lugares. E um dos desafios sempre é isso. Você tá certo em alguns momentos, errado em outros, mas tudo isso faz parte do barato. É isso.