ENTREVISTA COM NATÁLIA REIS
Por Miguel Fernandes, Vinicius João e Rafael Miranda
Reis é cineasta. Dirigiu, entre outros, Lua em Câncer (2021), Febre 40 C (2021) e Planetário (2021). A equipe da Imagem & Palavra agradece à entrevistada pela conversa.
Miguel Fernandes: Natália, pra começar com a nossa entrevista, eu gostaria que você nos dissesse o seguinte: o que significa, pra você, cinema contemporâneo; como os seus filmes se inserem nesse cinema; e se ele carrega algum tipo de herança, seja de nomes como os de Stan Brakhage, por exemplo.
Natália Reis: Eu gosto de pensar na minha relação com cinema contemporâneo como espectadora. Me sinto devedora de um certo ”cinema de invenção” – gosto de usar esse termo do Jairo Ferreira. Eu tento enxergar certos vestígios disso dentro do cinema independente e comercial. Acho que é um cinema sincero, mesmo quando é ruim. Não consigo ver o meu gosto dentro de certos nichos; gosto até de filmes da Netflix; sempre consigo extrair algo daquilo. Tenho dificuldade de entender o cinema contemporâneo porque eu não consigo visualizar muito bem uma linha evolutiva. E penso no que eu tô vendo agora e gostando, como os irmãos Safdies, que são os gurus do Rafael (Miranda), Joanna Hogg, que têm um cinema que me interessa bastante, e muitas pessoas do cinema brasileiro, com quem me sinto bem de estar convivendo no mesmo momento, como o Affonso (Uchoa), que vocês entrevistaram… Pedro Costa, Tsai Ming Liang… Tudo que tá acontecendo agora me interessa. Por isso que eu tenho dificuldade em fazer listas, sempre sinto que esqueço de alguém, que deve ser o que eu estou fazendo agora. Cinema contemporâneo pra mim é essa espera e expectativa que nunca vão ser correspondidas, mas sempre há a espera; com os Safdies é assim, Costa é assim, com o Gareth Evans, que eu revi recentemente e agora quero ver o próximo, é sempre assim; essa relação de esperar algo que vai vir, e que eu vou tirar meu próprio dinheiro, se um dia eu tiver, pra ver o próximo filme. Agora, como meu cinema se encaixa com o contemporâneo… Eu comecei a fazer filmes antes da pandemia, em 2016. Eram filmes narrativos, com atores, e eu sou péssima pra dirigir atores. Eu fiz um filme feminista – tava numa fase muito rebelde – sobre duas mulheres que se encontravam numa situação estranha, saiam pra beber, uns caras enchiam o saco delas e elas quebravam uma garrafa na cabeça deles. Esse foi meu primeiro filme. Aí eu fiz um segundo também porque eu ganhei um dinheiro por causa do primeiro. Aí dirigi atores novamente e disse ”Eu nunca mais quero fazer isso na minha vida” Foi traumático, foi horrível. Esses dois primeiros eu escondo. Aí na pandemia veio o (Festival) Ecrã. Eu já tinha uma certa experiência em pegar filme de arquivo pra montar uma coisa nova, uma experiência da faculdade de cinema, porque geralmente eu não fazia os trabalhos quando tinha que fazer, sempre entregava de última hora, procrastinava, então tinha que montar algo de última hora, aí tinha que ir no YouTube pra procurar imagens e áudios de entrevistas. Eu fiz um documentário inteiro em que eu cheguei a entrevistar o cara, mas o áudio ficou horrível, então eu peguei o áudio de uma entrevista que ele fez e no final parecia que ele tava narrando meu documentário (risos). Aí comecei a fazer a mesma coisa na pandemia, já que não podia sair de casa ou conseguir nenhum edital, e já que também não tenho condições físicas ou psicológicas de dirigir ninguém. Então é estranho pensar assim, porque eles são contemporâneos no sentido de eu fazer agora, mas eu pego filme muito antigo, que aparece na minha pesquisa, filme velho mesmo, de preferência os com resolução horrorosa, pixel estourado e película manchada, e tentar repensar alguma coisa com eles. Tenho vergonha de colocar meu nomes ao lado das coisas de que eu gosto, mas gosto muito da Pipilotti Rist, que é uma maluquinha que tem um tratamento de imagem bem legal, ela tá sempre investigando, começando com VHS e hoje em dia usando câmera ”hiper macro” de aproximar os olhos… Acho que as minhas influências são totalmente nada a ver: Cassavetes, Jairo Ferreira foi bem importante… se eu pudesse citar algum nome, como uma benção, seria o Jairo.
MF: Isso leva pra um outra questão que a gente tava discutindo, sobre a narratividade nos seus filmes. Você enxerga seus filmes mais recentes como narrativos?
NR: Acho que eu sou boa em escrever roteiros. E diálogos. Mas a partir do momento que eu comecei a buscar o found footage, que eu nem sabia que era também usado para o tratamento de imagens, pra filme de arquivo. Pra mim o filme de arquivo era A Bruxa de Blair (1999), essas coisas. Aí há um tempo eu entrei em contato com um texto da Nicole Brenez em que ela fala desse tratamento de arquivo. E o meu processo é totalmente maluco e desesperador. Eu vejo que vai ter algum festival e faço alguma coisa pra ele. Pode ser narrativo no sentido de que eu estou lendo algum texto ou ensaio e tento criar algo com início, meio e fim de um assunto. Mas quanto ao tema, não fico presa a nada porque o que eu gosto mesmo de fazer é tratar imagem. Quando tento contar uma historinha eu não sou muito boa. Inclusive, no Febre 40 C, eu não conto muito bem. Esse eu pesquisei e tentei animar um texto, pra transformar e ficar com que parecesse uma animação virtual dos anos 80. Me dou melhor com abstrair a forma e cor.
Vinicius João: Você pode falar mais do esforço narrativo nos seus filmes? Em quais você preferiu a abstração e em quais você procurou a narrativização?
NR: Acho que o Febre foi o meu maior esforço narrativo. Pensei ”Vou fazer um filme que pareça que tem duas pessoas com tesão na internet trocando mensagem”. Peguei um texto de um finlândes maluco, Erkki Kurenniemi. Ele tinha uma pesquisa de tecnologia, relacionando imagem e sexo. Ele tinha uma mania de ficar filmando ele transando com as pessoas. Eu cheguei nele porque ele tinha uns textos falando sobre imagem e música eletrônica. Aí eu achei um trecho de diário dele que falava ”O futuro do sexo é a tecnologia”. E eu achei muito engraçado, essa coisa de futurismo nostálgico, uma promessa, e eu nem tava querendo pegar o lado negativo, catfishing, vazar nudes, tava pensando de maneira utópica, só pegar o lado bom de ter um encontro na internet e vai ser ótimo. Peguei até um filme da década de setenta que se chama The Opening of Misty Beethoven (1976), que surgiu nas minhas pesquisas, porque era descrito como ”um filme entre a arte e o pornô” e aí pensei ”é isso que eu quero”. Porque também tem isso, de eu querer inserir, de forma diferente, os filmes que aparecem nas pesquisas. O filme não tem nada virtual, mas eu queria encaixar dessa forma. O meu primeiro, o Fratura Exposta, que eu deixo um pouco de lado, nele também houve uma busca narrativa de inserir textos, porque eu tava numa fase meio maníaca/obscura. Assim, eu gosto menos dele porque a gente tem essa tendência de gostar menos das coisas anteriores que a gente faz, mas ele foi uma grande piração de eu querer pegar um monte de filme de gente que eu curto de videoarte, experimental, e fui juntando… Gunvor Nelson… Enfim, esse foi uma piração. Eu nem sei dizer sobre o que ele é. Eu tava pegando textos de Bataille e fui jogando, foi uma grande mistureba. Mas já o Lua em Câncer, que todo mundo fala que é o de que mais gosta, que pra mim foi a abstração total, onde eu queria deixar tudo lindo, já me disseram que parece Cavaleiros dos Zodíaco, o que pra mim foi o maior elogio que eu poderia receber, porque eu queria deixar ele com uma aura, com uma cor, vazando. Acho que fui feliz nessa abstração. Ano passado eu fiz muita coisa, né? Saí fazendo. Mas foi um ritmo bom, de querer, de trazer textos e referências e imagens e sair produzindo sem parar. E teve o Planetário, que eu fiz a partir de um filme da Doris Wishman – uma mulher que faz exploitation – que eu achei incrível. ”Ai, que lindo as mulheres nuas todas lindas”, e aí eu quis criar uma paisagem mais interplanetária com as imagens dela. Usei um livro totalmente piração que fala de origem do universo mas que é uma coisa meio cientologia; não sei, achei num sebo. E aí fui usando as imagens. Talvez a gente possa separar assim: os mais narrativos são o Febre, o Fratura Exposta, e os mais abstratos são os últimos, em que eu tento buscar mais o tratamento de imagem mesmo.
VJ: Seus filmes têm ritmos intermitentes, a gente comentou que eles facilmente poderiam ficar passando em ciclos intermináveis. Isso poderia se enquadrar em videoinstalação. Você se vê como cineasta ou videoartista? Há alguma diferença entre esses dois modos de produção de imagens?
NR: Ótima pergunta. Tô até impressionada com a seriedade de vocês com o meu trabalho, porque eu não tenho. Falo ”ah, são só umas coisinhas que eu faço’‘. Há pouco tempo atrás um amigo meio conhecido do twitter me procurou, e ele sempre me disse que meus filmes são ”filmes de música”, e são mesmo, feitos em função da música. Meio ”videoclipados”. E ele tem um trabalho musical e perguntou se eu faria alguma coisa pra ele, um clipe. Aí eu fiz e ele foi fazer uma apresentação ao vivo, e me pediu pra eu fazer um outro vídeo pra ser projetado enquanto ele tocasse. E aí eu falei ”caramba, me encontrei”. Todos esses últimos filmes que eu fiz foram feitos na pandemia; só tive a oportunidade de vê-los no computador. Antes eu fiz uns curta-metragens universitários que foram exibidos em festivais, o que até foi legal, mas eu não tinha uma relação forte com os filmes. Mas eu nunca vi nenhum desses meus exercícios e experiências com o filme de arquivo, eu nunca vi fora da tela do computador. Aí até comprei agora um projetor, e projetei meus filmes na parede. Aí eu falei ”Nossa! Nunca mais quero ver meus filmes de outra forma”. Acho que não cabem na tela do computador. Tem uma coisa de textura, de ambiente…. Então, só consigo me imaginar fazendo para projetar, com gente tocando junto, esse tipo de experiência, acho que combina muito mais. Agora, essa coisa de videoartista e cineasta é um pouco tênue. Mesmo quando vou me inscrever em um festival fico na dúvida entre colocar a obra como videoarte ou curta-metragem. As pessoas têm uma certa dificuldade em lidar com isso, parece que sempre cabe a outra pessoa avisar para elas “olha, isso que você está fazendo é arte, e isso aqui é uma videoarte”. Estou esperando alguém falar “olha, seus filmes não cabem mais aqui”; por enquanto só escrevo em festivais como “curtas experimentais”. Mas já pensei em tentar um edital para instalação, uma coisa mais pensada pela relação com o espaço, talvez um caminho a ser seguido.
Rafael Miranda: Em Lua em Câncer se percebe uma unidade muito marcante, enquanto nos outros, como Febre, existem vários sistemas heterogêneos coexistindo. Como seu processo de alteração de imagem é único comparado aos outros?
NR: As pessoas que vêm falar comigo gostam mais dele justamente por causa dessa unidade. No Febre eu animei recortes de revista até não achar mais, e aí busquei arquivos de revistas antigas de computador no internet archive para cortar digitalmente e fazer. No Lua em Câncer estabeleci, de um dia para o outro, que o tema seria sobre “lua em câncer”, seja lá o que isso signifique. Eu tenho uma pasta secreta no Pinterest onde vou juntando como referência tudo o que é lindo, tudo o que é filme. Lá eu tinha essas ziegfeld girls, com aqueles cenários e aqueles figurinos, e eu pensava “tem uma coisa tão mágica ali, até parece que não preciso fazer muito; já tá dado: só de tirar essa imagem do contexto ela já terá alguma coisa”. Então, numa madrugada, fui lá no Karagarga, baixei tudo, fui selecionando as imagens e testando esse processo de um milhão de camadas no Premiere até me oferecer alguma coisa – porque também pode ficar horrível; tem essa coisa da experimentação, de não saber como a imagem vai se comportar… Até tenho presets de processos anteriores salvos, mas o de um pode não funcionar para o outro. Acabou ficando lindo e eu falei “é isso, não preciso fazer muito” e isso uniu todo filme. Aliás, lembro que eu estava testando com uma outra música; montei o filme todo com ela e acabei trocando, sei lá por quê; talvez por engano, mas acabou encaixando dentro do conceito do filme; ficou incrível e deixei assim. Mas é engraçado, é o que “tem unidade”, é o que “todo mundo gosta”, mas é o que menos penei na edição para fazer. Agora estou tentando buscar mais essa unidade, da cor, da textura, do tratamento, porque antes eu achava que o filme deveria se comportar como blocos, e cada bloco deveria ter um tratamento, e aquele tratamento tinha que ter algum diálogo com aquela imagem, e eu tinha que fazer tudo isso em uma semana… Então, é uma coisa de que estou me afastando mais. Se eu tiver mais tempo, se eu me programar melhor, quem sabe. É legal saber que vocês gostam do Febre, porque eu nem consigo assistir ele de novo, fico com vergonha…
MF: Como você enxerga o uso do digital no cinema? Você acha que hoje em dia ele é mal aproveitado?
NR: Eu sempre penso na relação de acesso, de quem tem acesso à tecnologia. Inclusive, o “mau uso do digital”, será que é realmente um mau uso? Temos essa tendência de achar que tem que se aproximar de um “naturalismo”, “muitos pixels voando na nossa cara o tempo todo”, enfim… Acho que tem usos e usos. Uma coisa que me fez gostar muito do filme do João Pedro Faro, o Sombra (2021), foi a utilização daquela “handycamzinha”. Por exemplo, eu fiz cinema, não sou formada porque pulei direto para o mestrado, e lá a gente tinha essa coisa meio masturbatória ou da película ou do digital full hd, sem o meio termo, esquecendo a câmera do celular, a handycam… Uma coisa que o cinema experimental proporciona é você saber aproveitar o formato, a textura das coisas, o processo da melhor maneira possível para o seu filme, igual o que o Stan Brakhage fez com a película. Dentro do cinema narrativo conseguimos ver como é que será usado; eu curto pra caramba algumas coisas do Michael Mann. Acho que só consigo pensar em termos de quem vai ter acesso e quem não vai ter, e como que a gente vai ver esse tratamento, se será naturalista ou não, por quea gente tem que cobrar tanta naturalidade… Não é naturalidade, é qualidade! É engraçado porque no curso de cinema tinha muito essa coisa publicitária de quanto mais poros e pelos você ver, melhor, enquanto perder o foco é feio. Eu gosto de ver um zoom de repente muito tosco, porque ali está se aproveitando das possibilidades que a câmera permite, como os meninos fazem em Sombra, com aquele zoom na lua. Se a minha câmera pode fazer isso eu vou querer fazer isso; é claro que vou, por que não? Então acho que é você saber aproveitar da melhor forma o que o formato te oferece sem cair na coisa da “qualidade”, do “primor”, enfim…
RM: E continuando nesse pensamento das – digamos – imagens como resultado de um processo de produção específico, ou seja, produções diferentes resultando em imagens diferentes, uma coisa em que penso quando vejo os seus filmes é que, já que você não está lidando com atores, há algo que é mais próximo de um ideal seu, ainda mais porque você se distancia do “carne e osso”, do “live action”; e tem ainda esse contexto solitário de pandemia. O seu tipo de produção te dá imagens que são mais próximas desse “ideal seu”?
NR: Achei interessante você colocar a coisa do solitário porque acredito que passa por isso, e talvez pela minha incapacidade de trabalhar com equipe (risos). Mas é isso: é um processo sobre o qual eu tenho controle, um processo que é quase todo da montagem, que é o que eu mais gosto de fazer. E, já que você falou da coisa do “carne e osso”, de eu não ter tanto controle sobre ele, eu lembro que já nos primeiros trabalhos de faculdade eu falava pra todo mundo assim: “Ai, vamos fazer animação? Daí a gente não precisa lidar com gente. Vamos fazer stop-motion?” Então eu acho que é isso; talvez eu esteja me declarando uma pessoa antipática, não sei (risos), mas é uma dificuldade mesmo. Dirigir é foda. Na verdade, eu não sou nem antipática; eu sou uma diretora muito boazinha e é por isso que os filmes ficavam uma merda, porque eu não sabia falar pra pessoa “Você tá horrível”, “Você tá ruim”, “Isso que você tá falando não tá bom”. Pra tudo eu falava “Parabéns, está bom” (risos); “Depois eu conserto na montagem”, e aí eu sofria na montagem. Mas essa coisa do filme de arquivo, do found-footage, também me lembra Carlos Adriano, que é um exemplo de pessoa que tá nisso há muito tempo no Brasil, e que eu acho que tem um tratamento parecido. É uma questão de ter um controle mesmo. A melhor parte é fazer a pesquisa de imagens; ficar lá procurando, baixando, guardando tudo no seu computador até não caber mais… e depois jogar no Premiere e ver o que aquilo vai te oferecer. Então é um processo totalmente solitário, mas que também te permite total controle; e é o que eu quero fazer, é o que eu gosto.
RM: Uma outra coisa que você falou, que era uma das perguntas que eu tinha aqui, é dessa parte da pesquisa. Uma coisa que eu acho interessante nos filmes seus que eu vi é que, no final, nos créditos, por mais que o seu nome apareça primeiro, não tem aquela coisa convencional de “Direção: Natália Reis” e etc, mas sim “Natália Reis” e então “Ziegfeld Girl”, etc. Eu entendo que pode não significar absolutamente nada, mas você acha que é somente uma questão de afinidades com esses nomes ou tem de fato um resgate deles?
NR: Eu queria que tivesse. Não quero me dar suma importância ou sei lá, mas eu acho legal. No começo eu falo assim: “Não vou pôr minhas referências, não; vocês procurem aí, vocês que venham falar comigo” (risos), mas também porque eram muitas. No Fratura Exposta foi muita coisa de filme, de vídeo de YouTube, enfim… Depois eu comecei a refinar mais o processo; falei assim: “Não, vou pegar imagens que estejam dentro de uma mesma família, de um mesmo gênero”. Aí eu não me sentia no direito de colocar “Diretora”, “Montagem”, não sei o quê, e pensei assim: “E se eu colocar como se fosse uma colaboração? Uma colaboração do tipo: eu fiz a montagem, essa pessoa fez a música, e essas imagens são de tal pessoa”. E também espero que quem veja possa falar “Ah, que legal. Vou pesquisar depois esse outro filme”. Teve até a Bia Saldanha, que fez a curadoria da mostra “Mulheres do Horror” – passou na Darflix, eu acho –, que achou que o meu filme cabia ali porque ela sentiu que era uma homenagem à Doris Wishman, que fez esses exploitations e tudo… achei super legal isso.
MF: Fazendo uma pergunta mais abrangente, eu e o Vinícius estávamos conversando há uns dias e chegamos a uma questão que nos pareceu interessante: você falou do cinema de invenção e etc., mas os seus filmes, no geral, você os encara mais como filmes de – digamos – descobrimento ou de aprofundamento, isto é, eles procuram descobrir novas possibilidades de fazer cinema, novas possibilidades do vídeo, ou buscam se aprofundar em possibilidades já descobertas?
NR: O meu processo é de descobrimento, mas acho que o que eu tô fazendo não é nada novo. A gente consegue pensar em outras pessoas que têm esse mesmo caminho de reaproveitamento de imagem e etc. Mas o meu processo, pra mim, é de descobrimento. Tanto que eu estou sofrendo aqui (risos), porque fiz um filme agora, encomendado, e ele tem tantas camadas e tantos tratamentos que eu não consigo exportar ele e manter a integridade do grão. O único arquivo com que eu consegui fazer isso foi um de 32 gigas. No geral, falando da minha abordagem e mesmo do resultado, eu não acho que tô inventando nada. Consigo pensar em outras pessoas que já fizeram, antes de mim, a mesma coisa: o próprio Carlos Adriano, Jairo Ferreira…
MF: …O trabalho em vídeo do Godard…?
NR: É que eu não queria me colocar na mesma frase que ele (risos). Tô pensando mais baixo, em uma pessoa mais próxima de mim. [Aqui a entrevistada sugere a leitura do texto Cartografia do Found Footage, de Nicole Brenez, e grande parte dos nomes ali citados: “Me deparei com esse texto e pensei: ‘caramba, é isso que eu faço’]. Mas tem essa coisa vasculhar o cinema, de falar “tudo já foi feito, então vou pegar o que tá aí”. Isso me libertou de uma ansiedade muito grande de querer produzir. Nada me impede de pegar o que já foi feito e trabalhar a partir disso.
RM: E quanto aos seus projetos futuros?
NR: Eu não tenho planos com atores. Tenho projetos, mas por algum motivo eles não se concretizam. É sempre alguma coisa que surge de última hora e que falo assim “vou abandonar todos aqueles meses de pesquisa e vou fazer isso aqui agora”. Eu tenho um projeto inacabado, um filme sobre antenas, antenas de rádio; fiquei 1 mês pesquisando, e saí mais ou menos sabendo montar um rádio por causa das minhas pesquisas; tem também um sobre a Frances Farmer, que eu quero retomar porque acho ela uma personagem incrível. Agora, mas provavelmente não vai dar tempo de mandar pro Ecrã, eu tenho pesquisado… uma coisa que eu percebi, juntando todos os meus filmes, é uma tentativa de criar paisagens, mundos, uma coisa de ter essas pessoas que pareçam seres ou entidades de outros mundos, então eu comecei uma pesquisa sobre Minas Gerais, o meu estado, que eu sempre meio que reneguei, pensando: “por que é que eu vou falar sobre o lugar onde eu nasci”. Pensando muito na geologia, na coisa dos cristais, eu comecei a juntar imagens de filmes de contos de fada soviéticos, que têm esses cenários absurdos com cristais gigantes, dentro de rochas, etc. E aí o meu próximo grande projeto é tentar criar uma Minas Gerais soviética (risos). Uma coisa que eu comecei a fazer também foi as minhas próprias trilhas, mesmo não sabendo fazer música. É o mesmo esquema com que eu faço os filmes, pegando música pronta, barulho pronto, e indo mexendo… mexendo… colocando muitos filtros. Como diz meu amigo, tem um processo de filtragens violentas. Eu também fiz um curta agora, que eu mandei pra um festival. Ainda vai sair o resultado. A trilha sonora foi toda feita por mim; fiquei bastante orgulhosa. E, nesse grande projeto mineiro, eu também vou querer fazer a trilha. É um grande projeto porque eu queria fazer um média – acho que um longa não dá – como se fosse um travelogue, aqueles filmes antigos de viagem; um travelogue-mineiro-cósmico-soviético (risos). Essas são as palavras que eu tenho escritas pra ir atrás.