EXTREMO OCIDENTE: “A IMAGINAÇÃO DO POUCO”

por Rafael Miranda    

Este texto contém spoilers

Moral da estória: às vezes é melhor explodir os próprios miolos do que sair de casa.

Irônico como Sombra (2021), comparativamente, olhando daqui e agora, parece esperançoso. Por mais que ali o gesto final entre amigos não funcione (como foi apontado aqui) a dicotomia diurno-noturno contrastava duas peças incongruentes de um todo. Como aquele não encaixe é corrigido em Extremo Ocidente (2022)? Mandando tudo pro inferno; beijando o desespero na boca: criando uma tragédia de dois atos.

A primeira palavra dita é um canto inaugural elegíaco: ”Uma vela está queimando”. Fala inicial dantesca: ”Está tudo perdido”. Clima beckettiano, de epílogo e esvaziamento. O soldado mora num buraco, com sua franzina fisionomia presa em planos que enquadram seu busto. Ele tenta permanecer em uma estação de rádio qualquer, se conectar com o exterior, qualquer que ele seja. Não consegue, como também falha em se matar e até em simplesmente ficar imóvel. Mas essa trepidação ”miguelclarkiana” de encenação injeta algo inesperado no personagem, que justifica ele não saltar no abismo, que o faz marchar: é a faísca de vida que lhe resta. Será assoprada.

Segunda metade: o único conhecido do Soldado come o melhor amigo do homem e bebe rolo de fita cassete esquentada no microondas. Depois dessa deliciosa comunhão, em planos de qualidade operática, somos apresentados ao terceiro ser, que se arruma pra noite. Ele é o único que terá um contato real com o protagonista. Irão conversar pela carne, trocar ideia pela epiderme, se entender pelas hemácias microscopicamente ampliadas nos créditos iniciais.

Talvez eu falhe em ver alguma luz nessa antropofagia. Pode ser que os sons de alarme escutados no arremate tenham sido absorvidos e agora estejam na cabeça do Canibau. é possível, quiçá até preferível – como demonstrado num plano memorável e amaldiçoado de Daniel Brito, focalizado na distância exata – que outro homem, em vez das larvas, devore seu corpo.

Por fim, como as duas criaturas, imagem e o som também se unem de maneira inesperada. Seja incorporando os sons bélicos de Baionetas Caladas (1951) na guerra do extracampo ou fazendo uma versão chopped and screwed duma canção de Rua da Vergonha (1956) para ampliar a demência causada pelo mercúrio e chumbo do chá de fita. Resultado: a banda sonora fabula tanto quanto o visual, distorce-o. Investimento total no simulacro.

Os dois atos; o Soldado e Canibau como protagonistas e duplos; divisão narrativa e tonal entre noite e dia; as inspirações simultâneas em Romero e Costa; o peculiar casamento entre áudio e visual: como no estruturalismo, há uma repetição subterrânea do número 2. Mas a questão aqui não é exatamente de contrastes e choques, como no barroco, mas sim de estranhos complementos. Há criatividade por trás desse fator dualista, mas  principalmente, como sempre, há necessidade. As contingências que se impõem ao fazer um filme de gênero nesse país sem dinheiro nenhum exigem saídas inovadoras; aqui elas vêm em pares.

Sombra era um filme em que a cidade maravilhosa prendia não só os metaleiros de classe média, mas também Faro. Agora, no rust-belt pós-apocalíptico, estão todos sem grilhões, livres pra realocar a dramaturgia, uma que caiba num longa de ficção científica sem orçamento. Libertos pra sofrerem nas velhas – e ainda inexploradas – matas compostas por ruínas que chamamos de ficção brasileira independente.