“SUPERAÇÃO DA IMAGEM”
Por Miguel Fernandes
Surgem as primeiras palavras no ecrã. Com elas e nelas, vemos nós as primeiras imagens. Imagens-palavras – a canja aguada, a limonada, a água – e imagens concretas – o que se nos projeta; sôfregos olhares e descolares de retina; imagem de mais e êxtase de menos; malditos letreiros e figuras estranhas… Mas eis que o compasso descompassa, o som se dissipa, e sobra-nos apenas a música de Baccara e outras tantas imagens. E eis, enfim, Febre 40°, filme cujo principal mérito é, se assim podemos dizer, a superação da imagem; filme este que, aliás, como as mais belas músicas, está no ramo das “artes da excitação”, mas que, no entanto, consigo apenas descrever como um quadro.
Estas palavras, eu as escrevi – não tais quais[1] – na ocasião do Festival ECRÃ. Se eu as reescrevo e as subscrevo, é porque o adorável contato que tivemos com Natália Reis em nossa entrevista esclareceu algo que não me havia ocorrido e que uma conversa de uma hora e tantos foi capaz de suscitar. Disse ela, entre muitas outras coisas que o leitor poderá conferir, que a diferença que há entre a criação de Febre 40° e Lua em Câncer é a presença do texto, pois Febre, além de ser baseado num ensaio, se vale das palavras, dos letreiros, enquanto Lua é totalmente desprovido deles.
O signo escrito (as palavras), no caso de Febre 40°, me parece representar incômodo, um contraponto à imagem “concreta”, do qual o filme se liberta para chegar ao estado de êxtase que poucos filmes conseguiram me instigar em apenas 7 minutos. Quanto a Lua em Câncer, foi este um trabalho em que, já liberta do texto, Natália, como nos disse, se permitiu, mais do que antes, à abstração; trabalho este em que o que nos toca é o puro movimento escorrendo pelas telas, o elã dos corpos, sem intermédio do signo, sem significação.
E é por isso que, embora carregue o signo de câncer no nome, o signo escrito pouco parece importar: a sua arte se dirige diretamente aos nossos sentidos mais primitivos, não exigindo de nós a operação de espírito que há em ler um texto, seja “prosaico” ou “poético”. Pois o homem ama observar o movimento puro e simples; pois a música encontra na sucessão de sons a expressão de um sentimento sem o intermédio do signo; e, se os filmes de Natália Reis são “entretenimento infantil” – como dito em seu Anúncio – e “musicais” – como disse a ela um amigo –, é porque eles se dirigem aos mais primitivos dos nossos sentidos, às mais primevas das nossas paixões.
[1] O texto foi consideravelmente editado, mas, com o acréscimo de uma coisa ou outra, a ideia que se apresenta é a mesma.