“GERALDO SARNO E SERTÂNIA”

Por Vinicius João
A Caravana e a Locomotiva
Brasil, 1968. Milhares de nordestinos desciam todos os dias para os grandes centros urbanos no sul do país; eram assalariados agrícolas, parceiros, meeiros, arrendatários e pequenos proprietários. Na mesma rodovia, sob o mesmo sol, mas na contramão, vinham a modernização, os novos meios de comunicação, o produto industrial predatório e os folhetos coloridos de cordel impressos em São Paulo subindo o território brasileiro a 120km/h. Junto a essa locomotiva do progresso, com o mesmo itinerário, mas seguindo viagem por alguma estrada de terra seca e pedregosa, a Caravana Farkas também alcançava o interior nordestino: era um grupo de cineastas com o objetivo de firmar registros etnográficos ao sabor de técnicas jornalísticas e de reportagens tradicionais aliadas aos processos discursivos da montagem cinematográfica. Dentre os viajantes, um ex-aluno da escola de cinema revolucionário cubana: Geraldo Sarno. De sangue baiano e obcecado pelo sertão nordestino, se reuniu com alguns consortes como Eduardo Escorel, Orlando Senna e, claro, Thomaz Farkas, para garimpar o agreste brasileiro. O projeto era uma resposta direta às movimentações socioculturais da década de 60: enquanto o nordestino migrava, o Nordeste, abandonado, refluía aos confins do sertão. A literatura popular em verso, o artesanato, a prosódia nordestina, o cangaço mitológico, a xilogravura e o entalhe; tudo isso resistia penosamente à cultura de massa, que, no sertão, era massapê.
Para tanto, Sarno teve que se mostrar aberto e receptivo ao material filmado. Ele não queria capturá-lo, mas se integrar ao movimento original; sua encenação era uma forma de perseguição da realidade vislumbrada. Como quando ele se apaixonou pela feitura artesanal de Vitalino, a dança do barro nas mãos do maestro-artesão, que dava forma à mitologia nordestina; quando demonstrou respeito pela substância musical ao enquadrar silenciosamente os repentistas em A Cantoria; ou ao deixar a câmera girar junto a gira febril e neopentecostal de Viramundo. Provas de devoção de um documentarista que não era apenas um interlocutor ou mediador entre público e povo. Sarno ultrapassava a mera imagem didática do gênero (e que o separava do material filmado) para poder desfrutar da então dialética câmera/objeto que estaria presente em todos os seus filmes.
A Caravana nos trouxe, quando concluída, dezenove filmes-verbetes, cada qual com seu próprio escopo temático, mas que muitas vezes se confundiam e tornavam a filmografia uma espécie de vizinhança, em que velhos amigos retornam para contar um caso ou nos guiar a algum ponto do sertão. Esse cinema ensaístico, mas que se queria educacional, nos remete às Brasilianas do mestre Humberto Mauro, uma série de curtas-metragens produzida para o saudoso Instituto Nacional do Cinema Educativo (1936-1966), que se debruçava sobre as memórias coloniais e o pasto ainda virgem do Brasil. Porém, enquanto Mauro filmava o ostracismo, Sarno tentava evitá-lo. Com seus filmes, o nordeste não seria, jamais, só uma ficção.
O tempo passa e Geraldo Sarno envelhece. As coisas mudam e ele ainda carrega um Sertão dentro de si. O cineasta continua obcecado por uma ideia de nordeste e de expressão cultural popular brasileira. Sente que as coisas estão se dissipando e, agora com os monumentos nordestinos carcomidos e soterrados pelo presente, seu trabalho se torna menos de um cineasta que de um arqueólogo: era hora de filmar Sertânia (2020).
SERTÂNIA: Imagens de carne, de osso e de isprito.

Se o cordel é o jornal mais lido do Sertão, a história de Antão-Jararaca-Gavião não podia ser contada de outra maneira senão pela tradição da literatura em verso, tão apreciada por Sarno em sua juventude. É assim que se inicia o último filme do cineasta: sentado próximo a uma lareira, Antão ouve seu amigo a lhe entoar uma gesta sobre sua história de muita valia. A bem dizer, o cantador era Neblina, antigo companheiro do bando de jagunços do qual fizeram parte e que, assim como Antão, morreu. Torna-se impossível dizer se o plano de abertura é o fim ou o começo da história do herói, se ali é o sertão ou alguma terra beatífica para onde as almas sobem. Logo depois a câmera do cinegrafista Miguel Vassy está rente ao chão, se arrastando entre a vegetação rasteira da Caatinga (palavra que, em tupi, quer dizer ka’a (mata) tinga (branca), informação que dispensa longos comentários sobre a fotografia em p&b escolhida para o filme). Sentimos o estalar das folhas secas, o corpo pesado de Antão e os gravetos que sorrateiramente invadem as vestes do ator; é esta sonoplastia que nos acompanhará durante a projeção, até mesmo em seus momentos metafísicos – por enquanto ainda estamos na terra, e morrendo. Antão tomou um tiro de um dos “macacos” do governo e agoniza de dor encostado em uma pedra. O sol pálido denuncia o sangue esfriando no corpo do homem. O calor se torna febril e não demora para que ele perca o juízo, comece a delirar e a confundir as imagens que se projetam em seus olhos. Algumas estão mais frescas, acabaram de acontecer, e é por onde começaremos: a contenda entre o bando de jagunços de Jesuíno Mourão e os soldados da república. O alarido dos bacamartes ainda ecoa no ouvido de Antão, as lembranças se entrelaçam com outras e se sobrepõem, o que de fato afeta o material fílmico; é como se estivéssemos assistindo a mais de um rolo de película por vez. Geraldo Sarno, que já lidou com o acúmulo de vozes narrativas em Coronel Delmiro Gouveia (1978) – os depoimentos, sendo eles ficcionais ou não, fracionavam a figura do capitalista, mantendo o coronel como fruto das expressões sociais -, agora tratava da imageria cinemanovista que ele mesmo ajudou a fomentar durante seus tempos de Caravana. Talvez muito se tenha filmado sobre o sertão nordestino que hoje todas essas imagens se confundem. Geraldo Sarno é assombrado por essas imagens assim como Antão é perseguido por si mesmo minutos antes de morrer. O eixo narrativo é esta sequência do jagunço se estrebuchando; o resto é memória coletiva, imaginário e imageria, restos alegóricos, ecos visuais e espaços já antes visitados. É assim que Sarno rememora Viramundo (1965) e o êxodo rural, na cena em que imagens de arquivo da cidade de São Paulo sintetizam todo o período que Antão passou lá até a morte da mãe (e claro, com Gilberto Gil cantando baixinho a música tema do média metragem). É assim também que ele coloca frente a frente o coronel Delmiro Gouveia e o jagunço Antão, porque somente aqui, em Sertânia, os dois poderiam habitar o mesmo plano cinematográfico. Sarno talvez tenha descoberto que, seja num plano terreno ou metafísico, as coisas se resolvem mesmo é no plano de cinema. O mundo é um escoar de imagens, elas pairam sobre nós. Daí a sua câmera suspensa, flutuante, que não sabe mais se aquietar em cima do tripé. As alucinações não poderiam ser acompanhadas senão por um fluxo livre, já que cada imagem dispara e nos traz uma nova, não de forma linear e muito menos seguindo uma ordem cronológica, mas por um rigor que se aproxima ao hipérbato barroco. Todavia, por incrível que pareça, Sertânia acaba: Antão finalmente morre, degolado e sua cabeça exposta durante o arraial de São João do que parece ser um Brasil de agora. Mais uma vez imagens de tempos e espaços distintos se cruzam: é o ritual nordestino, a festa cristã, o eterno-retorno pelas práticas de manifestação cultural. Para o cinema, um ponto de encontro, de coexistência, a um país que através da tela pode ver e se enxergar. É como sempre fizemos. Esses últimos minutos de fita bem poderiam ser o 20º e último filme da Caravana Farkas (e se chamaria algo como “Quadrilha e outras danças nordestinas”). Pela dimensão documental da imagem cinematográfica, Geraldo Sarno conclui (mas não termina) o ininterrupto e eterno Sertânia.