“JOANNA HOGG E O DRAMA NAS PEQUENAS COISAS”

Por Natália Reis

Joanna Hogg pode ser facilmente enquadrada numa categoria de realizadores de trajetória atípica. Desde seu filme de estreia, o média-metragem Caprice, realizado como filme-tese de graduação na National Film & Television School em 1986, a diretora inglesa passou um longo período trabalhando exclusivamente com televisão até despontar, após um hiato de mais de 20 anos, em 2007, com Unrelated, seu primeiro longa-metragem para cinema. Somam-se desde então cinco longas (e mais um em pós-produção), todos lançados em intervalos de tempo relativamente curtos entre si. Não quero entrar no mérito das questões que podem ou não estar por trás das mudanças de rumos, mas de maneira geral é possível notar a definição gradual de sintonias, de temáticas que se articulam, ainda que de maneira sutil, e de uma tonalidade que percorre o conjunto da obra e se coloca como promessa de algo mais. É isso que me interessa nesse momento no seu cinema: a partir desse ponto, enxergar as possibilidades que se desdobram adiante.

Acredito que a chave para o espectro mais autoral no trabalho de Joanna Hogg esteja talvez nos seus dois últimos filmes, The Souvenir (2019) e The Souvenir Part II (2021), ambos orientados por uma abordagem autobiográfica e metalinguística que permite a Hogg se exceder dentro do minimalismo formal pelo qual é reconhecida, enquanto lança um olhar retrospectivo sobre o seu próprio percurso cinematográfico. Ambientados numa Londres oitentista, The Souvenir e The Souvenir Part II configuram juntos uma espécie de coming-of-age que vai narrar a entrada na vida adulta de Julie, uma jovem de classe média alta e estudante de cinema cuja bolha parece ser irritantemente imperturbável.

No primeiro filme da sequência, vemos Julie se ocupar com a função de ter um apartamento só para si e decidir o tema do seu projeto de conclusão, até que seu caminho é atravessado por um homem misterioso, uma espécie de dândi moderno que faz com que ela experimente uma paixão avassaladora e o processo traumático de um relacionamento com alguém que leva uma vida dupla. Anthony é mais velho, charmoso, fala de música clássica e Fragonard ao passo que se aproveita financeiramente de Julie para manter seu vício em heroína. Se nesse “preâmbulo” vemos a protagonista se apaixonar, se decepcionar duramente e perder a pessoa amada, na segunda parte veremos o desenrolar do luto e da busca por reparação pela via da criação. O desfecho é a estreia do seu filme-tese, uma homenagem ao namorado falecido e manifestação espelhada da primeira obra de Joanna Hogg, estrelada pela atriz – até então pouco conhecida –  Tilda Swinton, que retorna aqui como mãe de Julie, interpretada por sua filha Honor Swinton Byrne no seu primeiro grande trabalho como atriz.

Inicialmente é difícil ter empatia com a personagem de Honor Byrne. Ela tem seu equipamento cinematográfico roubado pelo namorado, mas acredita cegamente quando ele diz que seu apartamento foi invadido, consegue de forma indolor 10 mil libras com a mãe quando a faculdade recusa apoiar seu filme, se mantém alheia a todos os conflitos no set, é indecisa, mimada, retraída, por vezes se anula completamente, e ainda assim existe algo muito fascinante nesses desvios e na sua  fragilidade quase infantil e distanciada. Pelo menos para mim. De fato, a minha dificuldade em estabelecer algum nível de identificação é partilhada com quase todas as protagonistas da filmografia de Joanna Hogg, mas isso não me impede de buscar novas aproximações ou de aceitar que uma certa frivolidade faz parte do seu cinema, favorecendo o desenvolvimento de outras personas femininas, aquelas que às vezes renegamos ou botamos na conta de “mais uma Madame Bovary”.

Revisitando suas produções anteriores, isso fica ainda mais claro: em Unrelated, Anna (Kathryn Worth) é uma mulher de meia-idade que decide realizar uma viagem sozinha para a Toscana para reencontrar uma velha amiga. Durante a viagem, ela se apega à camada mais jovem dos seus anfitriões e passa a sair e beber com os filhos e conhecidos dos filhos de seus amigos, participar de jogos e mergulhos sem roupa na piscina. Descobrimos por telefonemas que seu casamento está em crise e, entre um soluço e outro, num choro intenso, que toda a sua frustração reside na constatação de que acabou de entrar na menopausa. Já em Archipelago (2010), irmão (Tom Hiddleston), irmã (Lydia Leonard) e mãe (Kate Fahy) em viagem para as Ilhas Scilly aguardam a chegada do patriarca da família que nunca vem. Enquanto o irmão busca meios de expiar sua culpa burguesa se aproximando da cozinheira, a irmã vai no caminho oposto manifestando, sempre que pode, sua personalidade desprezível.

Por fim, Exhibition (2013) vai representar uma ruptura na linha que a cineasta parecia estar seguindo. O foco muda das interações problemáticas de famílias abastadas (ou quase isso), nas paisagens de cartões-postais, para uma crise conjugal entre um casal de artistas semiconfinados. Ele, H. (Liam Gillick), quer vender a casa onde moraram por quase 20 anos; ela, D. (Viv Albertine), sofre comedida pela decisão na qual aparenta não ter tido nenhuma participação, ou que talvez tenha sido coagida a concordar. A casa, projetada pelo arquiteto James Melvin e habitada por ele e a esposa até o fim de suas vidas, é um organismo vivo e bruto, uma entidade à parte com a qual D. parece se integrar perfeitamente. Nesse ponto os silêncios contemplativos de Hogg abrem precedente para uma exploração das distâncias físicas (paredes de concreto, portas corrediças, escadas, divisórias) e sentimentais erigidas entre o casal. E ainda, a reserva e o ressentimento da personagem de Viv Albertine, que poderiam precipitadamente serem confundidos com uma “ausência”, são superados quando testemunhamos seu corpo assumir o papel de suporte e investigação artística, reivindicando uma presença ainda mais arrebatadora.

A aparente passividade vai ceder lugar a um aprofundamento do universo interno dessas mulheres. Existe um comedimento da parte da diretora em não revelar demais, resguardar suas personagens da necessidade de compartilhar todo e qualquer pensamento. Admiro a forma como ela compõe as cenas arrastadas por longos diálogos com a câmera estática e como são atravessadas ocasionalmente por momentos de delírio, sonhos e convulsões eróticas. Um tanto uma cadência que obedece ao seu próprio ritmo, “anti-dramático”, como Hogg vai tentar nomear. Mas também uma outra forma de contemplação, de se demorar nas mulheres silenciosas, inadequadas e constrangidas. É um caminho que proponho quando penso que é difícil escapar das expectativas em torno de um posicionamento crítico sobre a imoralidade e o ennui da classe privilegiada (ou de sua própria condição, explicitada na autobiográfica Julie), que são temas tão caros à diretora. Há quem ainda acredite que se trata do movimento oposto: que o gesto de observar à distância já seria uma tentativa de estabelecer um comentário. Não há melhor maneira de olhar para esses filmes, e nem acho que é preciso definir alguma, mas talvez fazer do imperativo de Joanna Hogg uma orientação: saber ver o “drama nas pequenas coisas”.