NO QUARTO DE VANDA: “HABITAR O TEMPO”
Por Rafael Miranda
”O Samuel Beckett do cinema”, lia-se na manchete do The Guardian. Anos depois, a réplica: ‘‘Perdão, mas o cinema não tem um Beckett, um Joyce ou um Pessoa”. Anos antes, numa sessão de perguntas, um fã arriscou: ”Seu filme me lembra ‘O Homem que matou o facínora’! ”. A resposta do cineasta: ”Vocês são doidos”.
Seria fácil comparar o diretor português às peças do escritor irlandês. A suspensão do tempo, constância da dor, humor súbito, aprisionamento ao lugar e as fagulhas de esperança, tudo isso é comum a ambos. Talvez seja menos simples compará-lo à Ford, o pai da honestidade, qualidade muito bem herdada pelo lusitano. Poderia-se ainda juntar os paralelos, dizendo que Costa é para o diretor de faroestes o que o dramaturgo era para Joyce, o filho que anda pelo caminho contrário, a apostasia que silencia a apoteose, o apagão na cidade das luzes. Sim, claro, dá pra escrever tranquilamente sobre isso. Inclusive, já devem tê-lo feito.
Mas a verdade é que No Quarto de Vanda não tem nada a ver com literatura, metáforas, apoteose, ou qualquer uma dessas palavrinhas. Tem a ver com tijolo, concreto, ladrilho, laje de vigota, bloco de cerâmica e telha de amianto, com o som áspero que tudo isso faz quando é derrubado e, principalmente, como as pessoas, cujas casas feitas desses materiais são lentamente destruídas, reagem. Parece ser sobre o que já chamaram, pra acanalhar esse texto um pouco mais, de ontologia ou mundo numênico. Aparenta, falsissímamente, não ser arte, de tanto que roça no ”real”. Exorcizando qualquer enrolação: são quase três horas de possibilidades em um desses infernos que se abrem diariamente em cada esquina do mundo. O choque é ver que o possível para Costa é monstruosamente impossível para a maioria.
Atenção ao primeiro plano desse e de qualquer filme: seu título. Foco na primeira palavra, o pronome. No, não O. O espectador, como o realizador, testemunha impotente toda a favela ser aniquilada. Aos poucos, quase parece que alugamos um quarto lá, como quando o Russo sai do breu domiciliar dá vontade de cobrir os olhos: a claridade do sol contrasta e machuca. O bairro de Fontainhas, mesmo que não exista mais, ainda nos hospeda por quase três horas.
E apesar de toda essa especificidade, de ser um longo longa que evita a narrativa, com certeza sem nenhum centro, sem uma grande cena definidora, daquelas feitas e perfeitas pra comentar com a namorada ao sair da sala, há aqui, entupido como açúcar numa caixa de bombons, pra todos que souberem ver, tanto artifício quanto o melhor cinema de estúdio. Por mais que parte da minha tentativa de definir a fita seja, de maneira tão contemporânea, sobre o que ela não é (não é um documentário, não é miserabilista, não tem mistério nenhum) seria absurdo dizer que não há manipulação.
A decupagem é composta por menos de 200 planos imóveis, pouquíssimo pra um filme de quase três horas. Mais do que ”quartificados”, muito além de lembrarem Ozu, são enquadramentos que remodelam espaços domésticos e externos. Isso ocorre por causa de uma combinação muito específica de posicionamento de câmera e luz natural unida a alguns refletores e tempo, muito tempo, o suficiente pra gravar e regravar até aprender a abismar e perspectivar tanto esses campos. Durante as longas conversas, a maioria delas (com exceção de uma conversa entre Vanda e sua mãe) ocorrem sem o habitual acordo plano/contraplano; o espaço é mostrado na sua extensão fabricada, como um quadro a ser estudado, ou pelo menos varrido pelo olho-vassoura. Durante esse ritmo proposto, muitas vezes é difícil não encarar as paredes, mesmo quando há gente falando. Ocorre um fascínio pelo cimento, justamente porque ele é filmado com tanta profundidade, iluminado com tamanho cuidado, que não é mais argamassa nem parede sem reboco, mas outra coisa, algo sem nome e hipnotizante: fenomenológico. Todo o método conota calma, centenas de horas de material bruto; amadorismo erodido e o próprio processo hercúleo de produção de imagens. Daí a concretude do filme, que beira o palpável. Seus planos, pra além do conteúdo inóspito, são formalmente fabulosos, quase habitáveis.
O processo de montagem do Costa deve ser semelhante ao de polir um obelisco até ele virar uma estátua de tamanho humano, usando só um cinzel: um trampo do cão. Mas essa odisséia vale a pena, porque é lá que algo novo nasce. Certas cenas, como as conversas entre amigos, não poderiam existir sem várias câmeras, o que não pode ser o caso com uma equipe pequena como a daqui, que tenta, como no cinema do século 19, só com uma câmera e um tripé, interferir diretamente o mínimo e mais camufladamente possível. Isso pra nem falar sobre como alguns diálogos são deslocados, não vêm das imagens mostradas naquele momento.
Insisto, o núcleo duro de No Quarto de Vanda talvez seja sua síntese impossível entre duas peças aparentemente incongruentes: o materialismo miserável do conteúdo filmado da forma mais rica possível. A duração da filmagem demora anos porque, diferente de Coutinho em Santo Forte (1999) e Peões (2004) ou Kiarostami em Close Up (1990), E a Vida Continua (1992) e O Vento nos Levará (1999) (projetos onde há uma clara explicitação do papel/lugar teórico pelo que chega para garantir alguma legitimidade no retrato do Outro), o cinema do português precisa dessa enorme gestação e aclimatação pra revelar a dignidade – que sempre esteve lá – dos habitantes de um lugar totalmente estranho ao espectador de classe média e alta,não pela perspectiva desses habitantes, mas de uma visão inteiramente nova e profundamente colaborativa. Depois de Casa de Lava, os filmes de Costa nunca mais foram sobre o turismo da pequena burguesia branca pois ele apaga ao máximo a própria presença na temática das obras (ao mesmo tempo que hipertrofia sua assinatura na composição plástica de cada plano).
Como todos os rios conduzem ao mar e todas as estradas levam a Roma, ”todas as perguntas do cinema conduzem fatalmente a questão do realismo, donde encontramos de novo a questão do simulacro” (Michel Chion). A contribuição de Costa é ter elevado esse simulacro (tensão entre a ficção e real), não para a metafísica, mas para o verdadeiro ápice humano: a labuta. Esta, quando bem feita, num mundo que a espanca e a terceiriza cada vez mais, encanta: enquanto tudo ao ser redor tomba, Costa edifica.
A maneira como a dramatização está no começo da filmografia dele, vai se extinguindo durante o meio de Casa de Lava, praticamente some durante a trilogia de Fontainhas pra ir timidamente ressurgindo em Cavalo Dinheiro (2014) e explodir em Vitalina Varela (2019) é um tema fascinante que merece um estudo próprio. Mas, pra usar um clichê, fora daqui rarissimamente verdadeiro, todo esse percalço mostra o aprendizado de um artista em constante evolução; que anda um passo, mesmo que gigante, de cada vez.
Quando Costa mostra longamente um rosto, seja ele o do pai no desnorteador início de O Sangue (1989) ou Leão em Casa de Lava (1994), é tão difícil só olhá-lo? Sem simbolismos, sem justificá-lo, somente contemplá-lo? Pra medir suas olheiras, pra perceber como ele é completamente diferente na opressiva luz laranja, no verde, nas trevas ou de manhã? Pra quando muito tempo se passar, fechar os olhos e tentar lembrar cada detalhe da topografia daquela face? Parece que sim.
Se perguntassem pro Ford ”quem fez o mundo?”, ele responderia, irritado e sem pestanejar: ‘‘Deus!”. Mas Costa, cansado, ecoando um uruguaio, diria ”Os pedreiros…”. Porque é isso que ele é, afinal: um obreiro, alguém que edifica diariamente, batendo ponto em meio a destruição, nunca como coveiro, mas sim como arquiteto, como alvanel de paciência angelical, sem moralismos com os viciados nem sombra de preguiça com a profissão. Pra sobreviver no inferno, nada como um dia após o outro trabalhando.