“O TEATRO DE PAPEL DE UJICHA”

Por João Pedro Faro

Ujicha é um jovem cineasta de Kyoto. Ele completou dois longa-metragem feitos totalmente dentro do seu quarto, na casa de seus pais, protagonizados por personagens de papel pintados à mão, movimentados por um palito colado na parte de trás dos bonecos. Burning Buddha Man (2013) e Violence Voyager (2016) são breves jornadas de horror fantástico em que crianças entram em emboscadas de vilões diabólicos e sofrem as piores consequências possíveis para seus corpos de tinta e papel. Entram como ferramentas de movimento em cena gosmas dos mais variados tipos (principalmente para representar vômito e sangue) além de um apreço pela pirotecnia (ambos terminam com incêndios e explosões onde os cenários de papel viram cinzas, tomados por fumaça). Nessa empreitada estética pouco óbvia entre Lucio Fulci e Kazuo Umezu, Ujicha reivindica o esquecido termo gekimation para descrever seu espaço de operação.

O esclarecimento do que seria um gekimation abre importantes caminhos de diálogo dentro dos filmes de Ujicha. Enquanto uma infame retomada de um processo esquecido na indústria de animação japonesa, o gekimation de Ujicha pode ser entendido tanto como uma forte provocação dos meios de massificação da feitura de animes, onde um trabalho de larga escala como seus longas recorre à animação de papel para buscar uma fisicalidade e uma densidade há muito deixada de lado pela dominação do digital como meio soberano da produção de animes, mas também como uma reimaginação do que seria o próprio gekimation em si.

Vindo do infame termo gekigá, criado e difundido nos anos 50 pelo grupo de mangakás de Osaka encabeçado por Yoshihiro Tatsumi e Takao Saito, o gekimation não parece dizer muito sobre si mesmo. Se até o gekigá se tornou uma palavra maldita, usada de qualquer jeito para descrever qualquer mangá feito “para o público adulto”, o que dizer do gekimation para além de suas origens setentistas que buscavam apenas produzir animes de baixo orçamento?  Não há diálogo algum entre a intensa forma do que seria um gekigá original com o que veio a ser a passagem do gekimation pela história da animação japonesa. Não há peso de linguagem ou conteúdo entre os dois para justificar o uso do termo atualmente, mas há uma brecha de conexão que talvez seja bem mais certeira para falar do cinema de Ujicha: o gageki.

O gageki é uma das variações de nomenclatura do tradicional kamishibai, o teatro de papel japonês originários dos templos budistas. Operados por um contador de histórias que transmite as ilustrações de papel em uma caixa de madeira, imagens estáticas ganham uma movimentação e uma narrativa através do uso do som e da oralidade, remontando estéticas de tradições nacionais que, com o tempo, foram ganhando todo tipo de conteúdo popular (desde histórias de monstro até personagens estrangeiros).

O teatro de papel montado por Ujicha está justamente entre a tradição do kamishibai e os motion-comics de mangás de terror feitos de maneira independente por anônimos na internet (se for para comparar os filmes de Ujicha com quadrinhos, ele certamente está muito mais próximo de autores como Hideshi Hino ou Umezu do que de qualquer quadrinista relacionado ao gekigá). Nessa implosão de referenciais, Ujicha trabalha com a imagem estática como poucos no cinema contemporâneo, já que sabe extrair sentimentos intensos de seus bonecos que não movimentam a boca para falar e só mudam de posição quando lhes é conferido um novo desenho em um outro plano. Muitos dos momentos de absoluto horror em Burning Buddha Man e Violence Voyager são construídos por desenhos chocantes, totalmente estáticos, acompanhados pela sempre atenta linha de som que lhes confere as palavras de terror e os barulhos de perturbação.

Esssa banda sonora varia entre batuques e sopros típicos do kabuki e pesados sintetizadores retirados dos filmes de gênero oitentistas. A música quase nunca para, mas ela está sempre acompanhada pelo trabalho de som das vozes dos dubladores, que tanto em Burning Buddha Man quanto em Violence Voyager performam com uma emoção sempre acima da linha da normalidade. São atores de voz intensos, acompanhando personagens passando pelo verdadeiro inferno, e suas entonações são sempre definidoras para que a movimentação em cena (ou a falta dela) seja funcionalmente aterrorizante. São filmes cheios de berros, choros e desespero, e é impressionante como as vozes dos bonecos de papel sempre parecem estar a um passo de humanidade a mais do que o necessário, o que aprofunda todos os sentimentos de medo e desconforto. Junto às vozes, os efeitos sonoros também são meticulosos: estamos sempre entre gosmas sendo expelidas, ossos quebrando, cabeças explodindo e tripas para fora, e sempre há um som especial para cada um desses momentos (ainda mais quando a violência é apenas sugerida pelo som, algo que ocorre nos dois filmes e que acompanha o peso das imagens estáticas).

Burning Buddah Man e Violence Voyager são filmados como uma espécie de anti-animação, especialmente pela forma como são iluminados. Ao invés da típica animação analógica, que existe pela iluminação que vem detrás dos desenhos, as luzes de Ujicha iluminam seus personagens frontalmente ou lateralmente, como se filmasse um ator qualquer. Por vezes, ela garante uma profundidade desconcertante aos bonequinhos, especialmente quando pode formar uma sombra entre o personagem em primeiro plano e o cenário no fundo (os contornos dessas sombras são responsáveis por diversos momentos de terror onde tudo parece ganhar uma dimensionalidade difícil de ser replicada em qualquer outro método de produção). São figuras objetivamente unidimensionais, mas que estão presas em um jogo de luz que as transforma em vítimas e monstros críveis, tácteis, que esbanjam fisicalidade antes mesmo que uma jorrada de sangue falso atravesse seus corpos de papéis e nos mostrem do que eles realmente são feitos.

Acontece que os dois filmes compartilham quase os mesmos temas e estéticas, sendo aventuras habitadas por infâncias corrompidas e instituições aterrorizantes, o parque de diversão macabro em Violence Voyager espelha muito bem os templos budistas conspiratórios de Burning Buddah Man. São diversas as ideias de horror formuladas dentro desses palcos similares, sempre disposto a levar seus conceitos dementes às últimas consequências imagéticas e, consequentemente, emocionais, mesmo quando explora os lugares comuns ao gênero. O corpo infantil violado, um dos efeitos mais essenciais ao horror, encontra nos filmes de Ujicha tantas voltas em uma mesma ideia que barbariza suas pobres crianças que acaba por alcançar um lugar totalmente seu.

Os bonecos atravessam buracos e recortes, reluzem, dobram, rasgam e pegam fogo. Há uma constante transparência no processo de animação que, de forma única, aumenta de maneira radical a imersão no processo narrativo. Enquanto nos primeiros minutos de projeção os termos desse teatro de papel bizarro pareçam intransponíveis, logo o som, as luzes e o absurdo se aliam de tal maneira que fica difícil não adentrar a percepção por esse universo caótico, colorido e doentio. Ujicha é um ponto de diferenciação essencial no cinema de horror contemporâneo, mais do que na animação, por ser um autor cheio de reinvenções do gênero que consegue entregar o peso de uma dramaturgia gráfica em um processo artesanal que, além de renovador, é independente. Deixando para trás os termos imprecisos e as limitações de distribuição de um cinema como esse, há de se reescrever os termos de pensamento em torno do que ainda se pode fazer com o horror, com a animação e com a falta de dinheiro, nem que seja preciso confeccionar todo um novo mundo para que ideias realmente grotescas ganhem o domínio que merecem.