“OU TALVEZ A BELEZA TENHA INFLUENCIADO NOSSA DETERMINAÇÃO”

Por Francisco Elohim

Um filme de: jairo ferreira kiarostami sganzerla bressane phil solomon arthur tuoto chris marker godard robert bresson pedro costa straub huillet jpf tonacci mizogouchi paulo rocha jp rodrigues

montado por:

brunos pires”

Acho que um dos grandes baratos dum cinema que vem se tornando cada vez mais recorrente é o cinema de arquivo. Não que isso seja algo recente, mas há uma leva de cineastas que vem trazendo cada vez mais inventividade para essas imagens pré-existentes; afinal, creio que não exista nada mais nobre do que reviver e ressignificar imagens “concretas” em novas essências. E homenageá-las de alguma forma.

            Filme Delírio (2019) então assim: no Japão, visitando a tumba de velhos amigos, conhecemos Zé Polvilho. No túmulo de Paulo Rocha, resolve investigar as imagens. Ele é obcecado por elas, as penetra, as corrói. Eis então um personagem onipresente (Zé Polvilho não tem corpo físico, mas domina os espaços de todas as imagens que percorre). Agora, se mandando com uma cópia de A Ilha dos Amores (1982) entre as pernas, sua jornada começa. Ele é jurado de morte pela cinemateca.

Há então um percurso dentro do cinema, e por ele mesmo. Zé Polvilho é um grande curioso, um nostálgico. E é a partir da jornada em busca das suas imagens que encontramos alguns pontos cruciais: a memória e o filme. A memória – que me remete diretamente a cena da praia, em Elogio ao Amor (2001) -, é também a junção do filme; ou seja, para que se possa trafegar para uma nova imagem, é necessário que também preservemos a essência antiga (uma paisagem só é nova quando se compara a outra). E assim sucessivamente. E então temos o filme: a totalidade, a junção de todas as memórias. O curioso – e que me faz pensar ainda mais nas imagens que Bruno Pires decide colocar – é um violento anseio que perambula aquelas paisagens. Quando estamos diante das fotos de sua ida ao Japão, por exemplo, há uma eterna saudade que invade aqueles espaços. Um sentimento de conforto, mas também de inquietude. E quando finalmente podemos nos apegar por aquela paisagem, ocorre o restart, o erro que toma a tela, junto às grandes pinturas de Stan Brakhage, que dominam a sobreposição. 

E acho que nenhum meio seria mais possibilitador do que o cinema de arquivo, porque é exatamente por essa exploração imagética (há uma certa tendência meio documental e didática durante o percurso de nosso protagonista), que então encontramos um dos valores mais inestimáveis do cinema: o espectador. Até porque o autor desse tipo de filme também não deixa de ser um obcecado pelo cinema (ele é obviamente um espectador apaixonado), muito pelo contrário, é a partir de seu filme que essa obsessão se torna mais evidente. Cada nova relação que é apresentada na tela é de certa forma saudosa àquelas memórias, e Bruno Pires é extremamente certeiro na maneira em que as constrói. A música também tem papel fundamental, é ela que liga as telas; funciona quase sempre para concretizar a nostalgia desse percurso; é a plasticidade, o sintetizador, o som eletrônico-pop dos anos 80 (aqui especificamente Marcos Valle e o City Pop), que faz com que a ida e o retorno sejam compostos de saudades e alegrias (até por que, existe algo mais nostálgico que pop japonês oitentista?). As imagens e sons que se relacionam entre si: “ je proclame la destruction”,de Bresson, em O Diabo, Provavelmente (1977); as sequências de GTA constituídas por Phil Solomon; às pinturas abstratas de Brakhage; e as declamações de Otelo e Bressane em Viola Chinesa (1975): “o cinema experimental pede anistia!”.

Existe também uma relação virtual bem clara: na busca pelas imagens, acompanhamos Zé Polvilho trafegando por diversos servidores (inclusive revendo seu fiel amigo, Chris Marker), e isso me fez refletir em uma coisa: isso não seria então, o próprio espectador, buscando em fóruns cada vez mais obscuros, os filmes mais impossíveis? Essa relação virtual fortalece a ideia de que o cinema como meio imaterial também é um meio impossível. As imagens tornam-se tão variadas que a busca por paisagens mais raras parece o único caminho possível. E a liberdade que a internet nos dá é tanta, que a insatisfação de não ver tudo que é possível com os olhos, faz dessa busca necessária. “Eu procuro um ponto aonde meus olhos possam descansar” (Coração de Cristal, 1976).

Se não ainda não ficou claro, é que no fim, todos nós somos Zé Polvilho, porque como espectadores aficionados, também buscamos dos interiores das imagens outras imagens novíssimas. Temos papel ativo enquanto apreciadores, e enquanto atuantes do pensamento acerca do filme. E no fim da jornada, nasce uma lembrança: agora em paz, Zé Polvilho pode descansar. Teu acalento o espera, e o espectador também já pode se resguardar. Que a memória do cinema prevaleça sendo nossa.