“PARA TODOS OS RESTOS”
Por Cauê Ferreira de Andrade
Segundo Martin Scorsese, os dramas criminais sobre a vida na máfia deram o que tinha que dar pelas suas mãos na fatídica cena do milharal, ao fim de Cassino, onde dois irmãos são enterrados desnudos e com vida após serem brutalmente espancados por parceiros de longa data. Lá, todos os esforços no que concerne a contextualização do modus operandi e das consequências desse estilo de vida neste e nos filmes anteriores teriam sido expurgados ao longo de uma das cenas mais grotescas e humilhantes que já filmara. Ficou o exemplo. Portanto, é natural indagar qual seria o interesse por trás da realização de O Irlandês, sobre um algoz a mando da máfia através de cinco décadas. Afinal, ou algo escapou da síntese do milharal, ou algo surgiu após sua catarse.

O desencargo de consciência no reaver de espaços
A princípio, pensa-se muito numa evidente reflexão sobre o envelhecimento do gênero possibilitada por uma visão externa, de alguém que fez o nome ali e viu a iconografia se desenvolver sem sua interação. E quem sabe, indo além, a vontade de reaver certos espaços, sejam os dos novos meios de produção e distribuição (as plataformas de streaming), o do cinema abandonado há muito (o filme épico), o do subgênero, ou, principalmente, do próprio estilo. Averiguando a segunda ideia, cada perda de espaço seria fruto direto ou indireto de decisões carreiristas que marcam a figura do Scorsese tardio. As diretas decorrem tanto do realocar de interesse a tipos de produções benquistas e privilegiadas pela academia – de megaproduções de época (Gangues de Nova York), e cinebiografias de figuras chaves do cinema (O Aviador), à ficções avolumadas pela própria cinefilia (Ilha do Medo), ou apoiadas em novidades tecnológicas do momento (A Invenção de Hugo Cabret) – quanto almejar certa reparação com aquele cinema que sua nada homogênea geração ajudou a distanciar em meio às reformulações da indústria hollywoodiana, seguidas de pontuais tentativas de apropriação vistas, por exemplo, na digressão da aspereza e precarização de Sexy e Marginal e Caminhos Perigosos para o classicismo intervencionista de New York, New York e Touro Indomável, sob o véu assimilacionista. Já as indiretas, como a envolvendo o estilo, advém da influência de Scorsese, decerto a figura de maior autoridade do cinema dos últimos vinte ou trinta anos, na estética de parte considerável dos cineastas que iniciaram suas carreiras nesse recorte de tempo e hoje difundem amplamente suas marcas características, mais alinhados a anomalias do tipo Cabo do Medo e Vivendo no Limite do que a potência de Cassino.
Todavia, tanto faz o caminho percorrido, o mesmo propósito subliminar é refletido em ambos: o desencargo de consciência, de alguém que só fez o que tinha que fazer. Iniciado, em parte, no longa passado sobre um padre jesuíta com complexo de mártir forçado a abandonar sua crença perante os outros, ainda que siga preservando em seu coração, ao abrigo de uma nova concepção de fé. Concretizado no presente, sobre um homem capaz de tudo pela sobrevivência. Veja bem, o cinema que lhe formou se perde no tempo, parte dos seus colegas caem no ostracismo e ele, também projetado profissionalmente nas origens pela renovação que poderia trazer aos gêneros clássicos através do contraste de gerações, agora, destituído de contraponto, segue exercendo sua função em um cinema que passa a refleti-lo, dos processos aos sintomas dos resíduos scorseseanos.
Sintomas extrapolados sob a chave do excesso
Inclusive, sintomas logo extrapolados sob a chave do espetáculo pelo excesso, dado que, tal qual Paul Schrader ressaltou em tons eufóricos, o início da década passada foi marcado pela necessidade do cinema de se reafirmar quanto evento oposto às demais mídias visuais, seja mediante as performances externalizantes, seja pelo altíssimo valor de produção que abastece os longas com o que há de ponta em sua hiper fabricação, constatando uma escalada geral em detrimento da economia cinematográfica. E qual seria o precursor mais claro dessa transição senão O Lobo de Wall Street? A autoparódia de sobras carcomidas e sem métrica daquela retórica ilustrativa e autoconsciente, as redundâncias dinamizadas com o intuito de sobrecarregar o espectador com a concentração de imagens e descrições de episódios encurtados e compactados, envelopados pela trilha-sonora pop e assinalados pelo voiceover, como um meio de transmitir a adrenalina do estilo de vida de personagens suspensos em espirais autodestrutivas e inibir qualquer reação imediata por parte do espectador. Foi, em Os Bons Companheiros e Cassino, graças a subjetivação integral da ação, a embriaguez e a ressaca dos anos loucos em dose única. É, em O Lobo de Wall Street e seus derivados, uma saída fácil para compensar o pouco cuidado com a dramaturgia e certo desinteresse por noções elementares da realização fílmica, percebidos na falta de despojamento das formas, no emprego de novas tecnologias somente para alargar o comodismo dos mundos construídos em VFX, e na presença paternalista de realizadores em cabo de guerra com a ação de cada plano, atrelada ao exercício pleonástico onde, a título de exemplo, uma cena tem a localização apresentada, o porquê contextualizado, é parafraseada pelo voiceover, e coberta de todos ângulos e direções possíveis, pois um ou dois planos podem não bastar.
Deste modo, pisando em ovos, quem sabe seja seguro dizer que tanto as produções da Marvel e dos serviços streamings mundo afora quanto as produções tardias do Scorsese contribuem mais ou menos para a substituição do cinema por aquilo que o próprio batizou de “entretenimento audiovisual de escala mundial” no imaginário dos novos espectadores. Perde força, assim, a dicotomia propagada por terceiros do “bom cinema e suas tradições” – que ele passou a representar no imaginário cinéfilo – baratinado frente o avanço dos universos compartilhados e serviços streamings em amplo desenvolvimento – com suas peças pré-testadas, calibradas e modificadas até atenderem sem risco os gostos de um conjunto específico de demandas – uma vez que, nos últimos vinte anos, dividem inúmeras similaridades, com os mesmos corpos de produção e as mesmas regalias, recebidos com a mesmíssima comoção passageira, ainda que uma maior abertura ao grotesco e as linhas tênues de suas temáticas, sem a castidade dos universos compartilhados, diga que não.

Degradação de corpo e alma
O Irlandês ser o mais longo e mais caro, reter todos os vícios mencionados anteriormente, adotar uma burocrática decupagem multiplataforma meio-termo dos produtos do serviço streaming que lhe financiou e o atual cinemão-vitrine, constata o desinteresse do ítalo-americano pela articulação entre o princípio apolíneo e o princípio dionisíaco, pois, ainda que a alma negue, o corpo já está entregue há muito aos prazeres deste último, perdido nas tentações do comodismo, assim como Cristo esteve durante alguns longos segundos na cruz, antes de consumar o sacrifício, em A Última Tentação de Cristo. Contudo, talvez por funcionar em harmonia com a subjetividade de Frank Sheeran, agente marcado pelo regramento e pelo pragmatismo, a postura logo adquire a consciência de ter parte fundamental na dissociação com o tempo que se está, mote caro ao filme. Embora afirme e reafirme o processo de degradação física dos personagens com o mesmo interesse libidinoso com o qual olhava o corpo jovial em Quem Bate à Minha Porta?, a longa passagem de tempo consiste não só na consequente deterioração de corpo, mas na deterioração generalizada do imaginário de alguém que, apesar de ajudar a ocasioná-lo, pertence cada vez menos ao tempo presente. Para Scorsese, um tempo onde o estilo é tão reproduzido ao redor que, ao invés de caracterizá-lo, passa a correr em paralelo ao seu exercer profissional.
A iconografia gangster entorna desde Tom Powers e Tony Camonte homens famintos compensando algum tipo de carência emocional e/ou financeira de um contexto precário com o esbanjamento, colhendo o chumbo dos deslizes comportamentais em meio a pressão externa da lei ou do maravilhamento desregrado. As exceções à regra fatalista são, precisamente, os já velhos e corroídos pela culpa Michael Corleone e David Aaronson, e Frank Sheeran, incapaz de senti-lá. Se morrer é um passo indissociável do subgênero, o que realmente diferencia é como serão lembrados, quais marcas deixarão na vida privada e pública. Quando o corpo vira décor nas sarjetas de Nova York (Os Bons Companheiros) ou nos arredores de Las Vegas (Casino) o efeito é diferente das poças de sangue deixadas pelo lento caminhar de Sheeran, por consistir numa supressão de movimento entre o frenesi, opondo o fluxo de imagens em relação a quem se perde nele, e não a cadência dos passos da antítese do desregramento, carrasco amaldiçoado pela discrição, satisfeito com o lugar que lhe fora atribuído, dotado da compostura necessária, que faz o que tem que fazer sem permitir se conectar com os últimos sopros da vida ceifada, enquanto descreve com uma precisão clínica o processo de liquidação adotado no campo do voiceover.
A sentença em forma de cartela que recai sobre cada nova figurona do círculo, sucinta recapitulação de quem foram e como deixaram de ser, alarga o sentimento de insignificância, daqueles exemplos úteis que caem tal qualtantos outros caíram e cairão, diversificados pela quantidade de tiros no rosto. Em O Irlandês, sem peso, o corpo já é registro. A catarse dos temas de culpa e martirização, purgados por intermédio de chagas, desde o jovem-símbolo da guerra dilacerando-se em frente do espelho (The Big Shave), o homem-touro destroçando e sendo destroçado dentro e fora do ringue (Touro Indomável) até o padre negando a Cristo ao contemplar a lenta morte dos seus irmãos de fé (Silêncio), é agora mero corolário monotônico, não uma passagem com destino a depuração.
Ostracismo e reflexão sobre o próprio estilo
O Irlandês funciona dentro desse limbo indefinido entre a vida e o registro. A mudança de tom na última hora é, sobretudo, porque a estética scorseseana resolve, pela primeira vez, suspender o protagonista ao invés de projetá-lo até os finalmentes destruidores. Impedido de se contaminar com o delírio carnal dos personagens, aborta a taquicardia catatônica crescente aos limites do suportável, e do freio, contrário ao desnorteamento causado pelo choque estético na quebra de glamour nos semelhantes, surge a possibilidade de remoer sobre o baque, refletir o próprio estilo, embalsamado pelo desencanto da indeterminação.
Pacto firmado com ouro nas mãos, esvaziamento de tensões acumuladas, traição consumada, sangue expelido na parede, corpo cremado. Tudo, a partir daí, concentra-se no mais profundo medo do personagem-autor: o ostracismo. Antes, a relação de Frank com a filha, prenúncio claro, gira em torno disso, do falar e não ser correspondido, até o rompimento absoluto de laços. Depois, em passos oblíquos, a execução de Jimmy Hoffa. Por que essa morte é tão intragável, com uma conotação tão covarde, em um filme onde esse tipo de acontecimento é a todo tempo banalizado? Porque, mais do que matar um amigo, é apagá-lo do tempo, junto com o período que ajudou a caracterizar. Enquanto os outros corpos seguem uma sina clara, Hoffa é subtraído. Abandonado as lendas urbanas, o único corpo sem registro pode estar misturado no concreto utilizado na construção do estádio do New York Giants, enterrado sob a sede da General Motors, ou vendido para o Japão junto a sucata de um carro qualquer. Sabemos que não, nós e Frank. O peso em suas costas é correspondente a ausência de constatação, o pôr fim necessário a conclusão e preservação da história, não só a culpa.
Registro, constatação e preservação. Scorsese, além de fazê-los e conservá-los, atribui aos filmes, entre outras coisas, o dom de preservar a memória de nossas vidas e de nosso tempo. O paradoxo escancarado em seu último longa-metragem é o de um homem que, na busca pela sobrevivência, acaba findando o próprio tempo. Não obstante, cabe dizer, da busca do jovem Scorsese por alargar o formato cinematográfico acabar, décadas depois, direta ou indiretamente, fechando-o ainda mais. A Frank, resta contemplar a própria presença, a própria solidão, diante do vazio indefinido de uma porta entreaberta. Uma tragédia, em suma. E a Scorsese, o que resta? Quem sabe, no decorrer das mais de três horas de desencargos e reminiscências tenha alcançado o estado dialético desejado por todos seus protagonistas acossados, de uma busca pela destruição visando a depuração. Ou, ao menos, o panorama formado no processo tenha concedido o redirecionamento de rotas a seguir nos vindouros longa-metragens, distantes do comodismo e do mero perpetuamento da grife. Resta ao futuro nos dizer.
