“A Impossível Reconciliação no Cinema de Nicholas Ray” : Fora das Grades (1955) por Cauê Ferreira Andrade.

Quando se pensa no cinema de Nicholas Ray, comumente se visualiza títulos como Johnny Guitar (1954) e Juventude Transviada (1955), seus dois maiores sucessos de público, ou quem sabe, No Silêncio da Noite (1950) e Delírio de Loucura (1956). Todos reconhecidos imediatamente ou conforme sua obra foi consagrada pela teoria do Cinema de Autor, incrementada pelos jovens críticos da primeira fase da célebre revista de cinema Cahiers du Cinéma, visando diferenciar cineastas cujas obras difundem a força de uma afirmação pessoal em termos de estilo, mesmo quando submissos aos grandes estúdios.

Fora das Grades (1955), seu terceiro western e parte dessa que foi sua década mais prolifera, nem de longe está entre os destaques. Isto se justifica se olharmos o conjunto, não só por ser lançado poucos meses antes de Juventude Transviada (1955), mas realmente não estar entre os mais definidores. Contudo, essa é uma das belezas dos grandes mestres: mesmo um filme de aparente menor expressão preserva alguns temas centrais caros ao conjunto. No caso, é um dos mais abertamente compenetrados a personagens quebrados, aquém de concertos, tentando controlar a violência interior inerente à existência enquanto confrontados por circunstâncias sobre as quais não possuem nenhum tipo de controle. Então, talvez o adequado seja “não tão imenso”, ao invés de menor, porque de menor não tem nada.

Matt Dow (James Cagney) e o jovem Davey Bishop (John Derek) fazem uma viagem juntos após se encontrarem a beira de um rio. Mais adiante, permanecem no topo de uma colina posicionada em frente a linha férrea, esperando a locomotiva passar. O jovem, numa infeliz tentativa de exibir-se, dispara sem sucesso na direção de um falcão que sobrevoa ali, na sequência, o mais experiente acerta o alvo com extrema precisão. Os tiros despretensiosos despertam agonia na mente dos já alarmados operários da locomotiva, recém assaltada naquela mesma região. Em um ato precipitado, tendo interpretado os disparos como um sinal de ataque, visando escapar de maiores danos físicos, arremessam a sacola de dinheiro na direção dos viajantes, que só notam o sentido por trás da ação tarde demais para alcançá-los e desfazer o mal-entendido ali; veja, literalmente o problema cai em suas mãos, obrigando-lhes a arcar com os riscos de contornar a situação.

A notícia de um novo assalto se espalha, junto ao gosto pelo derramamento de sangue entre a já ressentida população. A desordenada intenção destrutiva segue à espreita, igual nos outros clássicos de Ray, motivada por meias verdades, espetacularizações ou o desejo reprimido – aqui, apesar de menos diabólico e sem ligação ao desejo sexual, é possível enxergar traços de Emma Small, antagonista odiosa de Johnny Guitar (1954), na figura do xerife, principal agente da tragédia em sua breve participação, já pressionado pela ineficiência anterior no trato com o crime. Arma-se a emboscada assim que a dupla é avistada cavalgando em direção a cidade. Sem chance de rendição, averiguação ou julgamento, disparam à queima roupa. Na sequência, estando os dois alvos já derrubados, descobre-se que tudo não passou de um equívoco.

Posteriormente, tentam reparar o ocorrido pagando as despesas do tratamento de Bishop, com chances de nunca mais recuperar por completo os movimentos de uma das pernas, e oferecendo o cargo de xerife da cidade para Dow, que ao aceitar, também tenta animar o jovem dando-lhe o cargo de auxiliar. Porém, não importa. O estrago está feito, o arco Rayniano está armado; os dois personagens, criando ou relembrando traumas, consequentes anormalidades, dali em diante não conseguirão se desprender da lógica inicial.

A grande diferença de Fora das Grades (1955), confirmada de ato em ato, está no fato do personagem central (Matt Dow) ter ciência do funcionamento dessa curvatura, ao invés de seguir imerso em seu desenrolar, que deve, necessariamente, direcionar as tensões a uma das partes. A escalação de James Cagney é reveladora: não só uma das figuras mais icônicas do cinema clássico, é também uma das mais impulsivas e errantes. De Inimigo Público (1931, William Wellman) à Fúria Sanguinária (1949, Raoul Walsh), são incontáveis as cenas de brutalidade que lhe marcam no âmago do imaginário cinematográfico.

É como se tivesse cruzado todo esse passado de sucessões de erros, e agora, depois de arcar com as consequências, perdendo partes de si no decorrer, munido de uma visão panorâmica, distanciada, vinda da experiência, tenta-se recompensá-los ao dar novas chances aqueles que seguem o caminho destrutivo que um dia seguiu – não faz parte do processo, mas luta ativamente contra ele do início ao fim. É um sobrevivente, um dos que restou para contar. Portanto, seus esforços são inteiros para aplacar essa destruição a todo tempo estimulada, tanto na fonte (a cidade) quanto no alvo (o jovem), contornar uma violência que se encontra primeiramente no interior (a alma e moral), suscitada por certa precariedade exterior (o corpo).

O conflito, já presente desde o ponto de partida, é desarmado na mesma medida que retomado, preservando a essência do objetivo. Nisso se percebe outra característica fundamental, aquela que, creio eu, torna tantos roteiros usuais, os quais teve de filmar pelas obrigações contratuais, profundamente expressivos quando encenados: aproveitar à exaustão todas suas possibilidades de desenvolvimento e impacto. Segundo Jacques Rivette, no texto sobre Paixão de Bravo (1952): “Tudo sempre procede de uma simples situação em que duas ou três pessoas encontram algumas concepções fundamentais e elementares da vida. E a verdadeira luta acontece em somente um deles, contra o demônio interior da violência, ou de um pecado mais secreto, que parece ser ligado ao homem e sua solitude.”

O jovem, tido como causa perdida pelo médico que acompanha seu processo de recuperação, é o cerne do conflito, a força aferente por trás desse retorno, age como uma contradição humana, em constante alteração de tom e intensidade, perdendo-se na própria confusão. Antes disso, o “meio-homem” dito ao descobrir que pode não recuperar uma de suas pernas, é definidor, para ele e todos outros personagens quebrados que Ray olhou com tanto interesse.

A propósito, se segundo Rivette, Howard Hawks é o único diretor americano que sabe delinear a moral, Nicholas Ray, inversamente, talvez seja o nome que melhor lide com os inconformados, assim sendo, o que melhor cria a identificação necessária entre esse tipo de personagem e o público. Vide o interesse genuíno pela violência contida em todos os seres, para além de bom ou mau, definida mediante situações, o agir com os nervos à flor da pele, deparando-se com as próprias fraquezas e lacunas durante o exercício.

Em outra prova de extrema sensibilidade, retoma a intensidade característica de Cagney no contato com o jovem, pela intrínseca relação paterna formada a partir do conflito inicial, consequentemente, a decepção com suas vindouras atitudes. Mais do que se sentir responsável pelo ocorrido, e talvez mais do que a chance de preencher o vazio deixado pela morte do próprio filho, é motivado por ver ali seu reflexo. Quer dar a chance dele não se sentir quebrado, conformar o inconformado.

Durante os estrondos e decepções seguidas de desculpas e novas oportunidades, se percebe que o cinema de Nicholas Ray não se trata de soluções imutáveis ou alinhamentos concretos. Não se cura o desencaixe interior. Tal qual o doutor diz ao ter ciência que ele jamais recuperará por completo os movimentos de uma das pernas: “É um milagre que esteja vivo. E milagres não vêm aos pares.” As coisas se mantêm incompletas, indefinidas, sensíveis as tensões externas de elementos instigantes, se reorganizando e desorganizando até o ponto de rompimento total, quando o espaço de ação já está arruinado para continuar.

Acontece o que desde Amarga Esperança (1948) marca os desfechos de sua obra. Resta, portanto, o abraço do casal – aquele mesmo abraço final em Paixão de Bravo (1952), quando o casal abandona o mundo dos rodeios após o personagem de Mitchum, lendário no meio, dar a última volta gloriosa rumo a derrota, na tentativa de provar a si próprio sua autonomia frente a inadequação com o tempo que se está – um misto de tristeza e alivio, e a certeza que até a destruição se tentou.