“Ájax ou Le Cid ?”: Juventude Transviada (1955) por Éric Rohmer.

(“Ajax au Le Cid?”, Cahiers du Cinéma 59, maio de 1956)

É uma lástima que os distribuidores franceses tenham pensado por bem em envolver o mais recente filme de Nicholas Ray nessa mistura sem sentido e gramaticalmente monstruosa (não se chamaria de expressão) em forma de título: La Fureur de Vivre (A Fúria de Viver). É feio, vulgar e, sobretudo, significa absolutamente nada. E ainda, o título americano é contido e apropriado; se não entrega a chave do filme, ainda assim esclarece o propósito do autor: Rebel Without a Cause (Rebelde sem Causa), a causa pela qual se luta.

Os leitores da Cahiers sabem que nós tomamos Nicholas Ray como um dos melhores – Rivette diria o melhor, e eu endossaria isso – da nova geração de realizadores estadunidenses, a geração que entrou em cena somente após a guerra. Apesar de sua óbvia falta de pretensão, ele é um dos poucos a possuir seu próprio estilo, sua própria visão de mundo, sua própria poesia. Ele é um auteur, um grande auteur

Um fator perceptivelmente constante que permeia toda a obra de alguém é uma faca de dois gumes: é prova de personalidade, mas, em alguns casos, também de escassez. Mas as restrições impostas pelas produtoras aos realizadores são tantas; a mão de obra, os gerenciadores e os bons capatazes, tão numerosos, que a presença de um leitmotiv é, a princípio, um sinal favorável. 

A diversidade de temas lidados por Nicholas Ray e a riqueza das variações que ele adiciona à beleza dos três ou quatro temas tão caros a ele tendem a fazer sua originalidade menos fácil de pontuar em comparação aos seus rivais. É impossível atribuir qualquer rótulo conveniente à sua posição, assim como se faz com John Huston. Não são problemas que o interessam, como em Brooks, mas seres humanos. Não há um traço das subtilezas psicológicas tão caras a Mankiewicz; nem mesmo aqueles flashes instantaneamente deslumbrantes de lirismo, como em Aldrich. Seu tempo é lento; sua melodia, geralmente monocórdia, mas sua delineação é tão precisa, e seu progresso, tão compulsivo, que não nos permitimos devanear por sequer um momento. As set-pieces de bravura, brilhantes como são, só assumem proeminência após um lento crescendo. É mais uma arte de “conexões” do que de “brilho”.

O espírito deste filme é similar àquele dos filmes anteriores, mas as situações por si só nos oferecem analogias muito específicas. A jovialidade dos heróis e suas intensidades teimosas são aquelas dos personagens de Knock on Any Door e They Live by Night. Já encontramos o tema da violência em On Dangerous Ground e In a Lonely Place. O heroísmo fútil de James Dean é o mesmo de Robert Mitchum em The Lusty Men ou James Cagney em Run For Cover. A personagem personificada por Natalie Wood não é tão diferente da personagem de Joan Crawford em Johnny Guitar, apesar da diferença de idade. Irei ainda mais longe: sem exceção, todas as heroínas em seus filmes — Cathy O’Donnell, Gloria Grahame, Susan Hayward, Ida Lupino, Viveca Lindfors e as duas já mencionadas — assumem um ar de supreendente semelhança física. 

Assim como ele é o poeta da violência, Nicholas Ray é, talvez, o único poeta do amor; é a fascinação peculiar a ambos os sentimentos que o obceca, mais do que o estudo de suas origens e suas próximas ou longínquas repercussões. Não a fúria ou a crueldade, mas aquela intoxicação especial na qual somos mergulhados por uma ação, situação ou paixão fisicamente violentas. Não o desejo, como a maioria de seus compatriotas no cinema, mas a misteriosa afinidade que une dois seres humanos. A tudo isso eu adicionaria um sentimento pela natureza, perceptível no segundo plano — tanto no sentido literal, quanto no figurativo —, que está em harmonia com seu temperamento mais como um colorista (até em seus filmes em preto e branco) do que como um artista plástico.

Enfim, nenhum outro diretor sabe dar a seus personagens tão claramente a aura de possuírem uma genealogia em comum. Eles são marcados com o selo do mesmo destino, da mesma moral ou da mesma doença física, que não é uma mancha nem sequer uma decadência. Olhe as faces femininas, com suas bochechas macias, olhos circundados por sombras e seus lábios densos; aquelas silhuetas másculas e atléticas, os Ryans, os Dereks, os Mitchums, exauridos, ou melhor, recuados para dentro de si mesmos. James Dean leva isso a outro nível: ele é como uma crisálida mal dobrada para fora de seu casulo; voltada para si mesma. Há uma solidão mais sofrida do que desejada, uma busca torturante por afeto, amor ou amizade.

Eu disse há pouco a respeito do desenvolvimento linear, mas não se trata daquelas linhas bem retas que Hawks traçaria — a ampla e épica estrada, as calmas progressões, a postura ereta. Aqui tudo é circular: dos gestos de amor até movimento das estrelas; dos olhares penetrantes que o envolvem em sua intensidade enquanto desejam evitar seus olhos até aquelas perseguições errantes, aquelas mortes que percorrem seu ciclo completo e retornam os heróis ao seu estado inicial de inocência. Sim, é isso: o que esses homens-crianças não têm é o tipo de virgindade com a qual o escritor de aventura dota seus personagens. Eles não têm uma complacência resignada, tampouco a aviltação que pertence ao homem do romance moderno — e nem sequer são inteiramente culpados.

Nicholas Ray é um poeta, disso não há dúvidas; no entanto, não é somente o caráter lírico de seu último filme que eu quero enfatizar, mas também seu caráter trágico. Primeiramente através de sua forma, que pode parecer um pouco superficial, mas não deixa de ser importante. Rebel Without a Cause é um verdadeiro drama de cinco atos. Primeiro ato: exposição. Dois jovens e uma jovem garota acabam de ser pegos pela polícia. Os pais intervêm. O assunto é imediatamente situado no plano moral, onde se permanecerá por todo o filme. Por que a rebeldia? Sequer tem aquela profundidade adequada ao que é intencionalmente absurdo, e tampouco representa somente o salto repentino de um jovem animal inquieto. É a honra desses jovens que está em questão; uma honra má concebida, mas que não pode ser de outra forma pois o meio e as circunstâncias não deixam proficuidade. 

Um excesso de uma psicanálise ingênua certamente pesa sobre o argumento, mas não acho que tenha de ser vista como uma explicação ou mera desculpa; é parte da vida estadunidense. De qualquer forma, esta é minha opinião tendo visto o filme. A confusão me irritou momentaneamente, assim como uma certa insolência, uma apatia — eu até diria estupidez — nos personagens. São assim mesmo, uma necessidade dramática. 

Sem mais delongas, vamos ao Segundo Ato: nosso herói principal, personificado por James Dean, prometeu se comportar e, enfim, volta à escola. Seus colegas de sala zombam de sua pretensão à “dureza”. O primeiro interlúdio lírico, com a aula no planetário; aquela evocação apocalíptica que mal sucede em cobrir os olhos de nossos garotos com ansiedade ou falsa indiferença. Uma ideia demasiado simples no papel, mas que tem força e profundidade em sua execução, realizada tanto com escárnio tanto com gravidade, como tudo que virá a seguir. Conforme saem, mais provocações. Dean tenta não se envolver, mas sua honra está em questão — não somente sua honra como um valentão de uma cidadezinha, mas sua honra em todo sentido. Uma luta de facas, onde a implacabilidade e a beleza da paisagem ao fundo faz esquecermo-nos que é somente uma brincadeira de criança. Ainda há mais: a revanche deverá acontecer naquela mesma noite em uma prática ainda mais absurda e perigosa.

Este é o Terceiro Ato. Não se esqueça que a gana dos personagens tem sido o principal mecanismo da intriga até então — e assim será até o fim. O herói se retira à sua cabana — isto é, sua família — para meditar. Então se apresenta para a batalha. Uma set-piece, mas desta vez à noite. Uma peripécia que faz a ação ressurgir: o jogo consiste em dirigir carros em direção ao mar e saltar para fora no último segundo. O adversário é morto. Todos fogem dali. 

Quarto Ato: Dean salvou sua honra e ganhou o amor da namorada da vítima, a garota que ele conhece na delegacia, interpretada por Natalie Wood. Ele torna à casa e diz aos seus pais sobre sua intenção de se entregar à polícia. Eles o dissuadem. A covardia provoca sua indignação. A fraqueza do pai não só “explica” a notoriedade insalubre e a presença do “complexo” de honra do filho, mas as justifica — no sentido moral do termo —, chama por isso; demanda. Violência, cenas desagradáveis lidadas com uma franqueza incomum. Ele vai à delegacia, mas a polícia não quer vê-lo. Enquanto isso, suspeitando de uma traição, seus colegas de classe vão à sua busca. Seu único amigo, um garoto moreno estranhamente chamado ‘Plato’ (Platão [Sal Mineo]), consegue juntar-se a ele após vários incidentes. 

Este é o último ato, à noite, em uma casa abandonada que remete a On Dangerous Ground ou Johnny Guitar. Enfim o segundo interlúdio lírico, quando Natalie Wood junta-se aos dois garotos. Uma cena de amor à luz de vela na sala vazia; paz e tormento na noite; além do cinismo infantil, vem a primeira inquietação, a primeira vergonha: a beleza de beijos e afeições. Diante da mulher, nosso herói de outrora torna-se o pequeno garoto que ele não podia ser com seus pais, mas simultaneamente descobre suas responsabilidades como homem. O erotismo de Ray é, se isso importa, tão inquieto e equívoco quanto se possa desejar. Nesse ponto, sim, o psicanalista terá bastante escopo, mas certamente não será capaz de apreciar o quanto nós, a audiência, sentimos quando vemos os garotos daquela tarde se prepararem para uma batalha física e moral, uma batalha digna desse nome.

Movamo-nos. Não somente com os eventos (que vêm de forma curta e grossa: a chegada dos outros jovens, a luta com Mineo, que se assusta e atira; a polícia na cena, a perseguição no bosque); tampouco com a tragédia do desfecho (quando um policial atira em ‘Plato’ assim que ele aparece no topo da escadaria, nervosamente empunhando uma arma que Dean tinha descarregado sem o seu conhecimento). Movemo-nos bem à frente: atenuamos a distância que mantínhamos entre nós e os personagens. Seus motivos são o nosso motivo, suas honras, a nossa honra, e suas loucuras, a nossa. Eles emergem-se — por assim dizer — da inautenticidade. Por mérito próprio, eles atingem a dignidade dos heróis trágicos, a qual não conseguíamos ver neles a princípio.

Espero ser perdoado pelo meu vício favorito, o de evocar a memória dos antigos gregos. Não creio, de boa fé, que tal paralelo seja artificial nesse caso. A noção de destino é arraigada, nas obras de qualquer período de qualquer nação. Mas, sozinha, não é suficiente para o fundamento da tragédia; precisa-se de apoio de uma grande dissensão entre as forças presentes a todo momento, no homem e à sua volta; entre a altivez própria do indivíduo e a sociedade — ou natureza — que não pode a permitir, vitimando-a, punindo-a. 

Um herói trágico é sempre, em algum sentido, um guerreiro desperto da intoxicação da guerra, subitamente percebendo que não é mais um deus. Qualquer um que reler as tragédias gregas por prazer próprio, com os tempos de escola terminados, irá se deparar com a presença de um tema o qual os comentadores pouco comentaram e que, infelizmente, nunca inspirou um de nossos clássicos: o tema da violência (assim que se deve compreender húbris e orgia), uma violência que deve ser condenada, mas jubilosa e bela.

A concepção moderna de destino não é como a do acidente banal e estúpido que vitimou James Dean, o ator, no ápice de sua carreira. Não é a absurdez de possibilidades, mas da nossa condição ou de nossa gana. É a desproporção que há entre a estatura do homem — sempre um nobre — e a futilidade das tarefas às quais ele se submete. Não que os antigos tenham sido mais sábios que nós, ou dado mais de si nas batalhas — eles também sem uma causa; mas códigos de honra estritamente definidos sempre oferecem um pretexto para a mais absurda conduta. Algo de que eu mais gosto neste filme é que, saída das bocas desses jovens apáticos de classe média, a palavra “honra” é imutável e não perde nem um pouco de seu brilho puro e deslumbrante, mantido por essas crianças, esses cowboys, esses fora-da-lei da pradaria; mesmo que a avareza e a tola obstinação deles sejam condenadas pela sociedade, pela moralidade, pelo que quer que seja — em outras palavras, pelo destino. Eles não são totalmente culpados, mas sequer inteiramente inocentes também; são somente arruinados pelo defeito de seu século. 

É tarefa dos políticos e dos filósofos mostrar à humanidade horizontes que são mais claros que aqueles que foram escolhidos, mas a missão do poeta é duvidar desse otimismo, extrair dos sedimentos de seu tempo a pedra preciosa; ensinar-nos amor sem proibir-nos de julgar; manter sempre vivo em nós a noção de tragédia. 

Essas ideias me ocorreram certo dia num cinema local, onde projetava-se In a Lonely Place. Cada vez que vejo um novo filme de Nicholas Ray, essas ideias me vêm à mente de novo, e particularmente com este, que é sua obra-prima.

(Traduzido por Miguel Fernandes a partir da tradução em inglês de Liz Heron)