“O Cinemascope subversivo de Nicholas Ray”: Delírio de Loucura (1956) por Vinicius J.

Truísmo é qualquer tipo de contemplação pelo cinema de Nicholas Ray. Faz-se repetitivo comentar, mas ainda assim reitero: sobre as lentes deste cineasta, as formas se transcendem. Assomam a ponto de serem maiores que a vida. Prova fílmica disso é sua obra Bigger Than Life (1956), um retrato que inicialmente aparenta ser trivial, mas que entra em dialética por causa de sua moldura: o CinemaScope. A relação do cinema do Ray com essa ferramenta (as lentes anamórficas) é distinta, e, usando-as, ele pode extrair da imagem algo que suscita apenas com a interferência da tecnologia, como por exemplo a força de seus primeiríssimos planos (close-ups) em gestos ou olhares e a compressão dos corpos em ambientes fechados, trazendo um sentimento aprisionador quando filmado em espaços pequenos. Afinal, por que alguém filmaria com o CinemaScope uma trama que se passa boa parte dentro de um ambiente familiar pacato? Ou melhor, o quão grande a imagem de um homem pode ficar quando o contra-plongée é ostensivamente enclausurado? Em questionamentos típicos de quem se debruça sobre o cinema rebelde de Nicholas Ray, tento escrever sobre seu filme mais vertiginoso.

Não uso a palavra “vertiginoso” por mero acaso adjetival. A obra-prima de Alfred Hitchcock me remonta diversos aspectos do filme de Ray, mas, aqui, vamos nos centralizar no aspecto magnético do olhar cinematográfico e como isso dialoga com as obsessões internas dos personagens. Em Bigger Than Life acompanhamos a rotina corriqueira de Ed Avery, um professor estadunidense acometido por uma rara doença. Mesmo com problemas na saúde e no campo financeiro, a família do protagonista aparenta viver bem, harmoniosamente em toda sua mediocridade. Entre conversas triviais sobre o que comprar, o que comer, o que jogar, o CinemaScope magnetiza nosso olhar naquele cotidiano. A superfície fílmica reluz, mas a substância da imagem não parece estar em consonância. Ray opta por se manter preso em um jogo de internas, mapeando o ambiente conforme aprendemos sobre o protagonista. O cineasta dizia que a arquitetura era a espinha dorsal de todas as artes; seu gosto pelas horizontais refletia numa encenação clássica, seguindo alguns princípios de exatidão do plano. Em contrapartida, desestruturava os alicerces da família tradicional. O sentimento de ordem, no filme, é a fonte de sua irreverência.

Destarte, um contexto histórico então pode ser introduzido ao filme: a sociedade registrada por Ray é de um pós-guerra alienante, entre a Guerra Fria, em que as pessoas recorriam ao consumismo e à ideais de normalidade e compostura social distorcidos, tudo para que um bem-estar fosse gerado, mesmo sendo, inevitavelmente, uma farsa. Os vícios faziam as pessoas esquecerem do caos, e Avery, para curar-se da doença, precisa ingerir doses de Cortisona a cada 6 horas por tempo indeterminado, correndo o risco de obter efeitos colaterais, como mudanças repentinas no humor e psicose. Nesse sentido, o “vício” retratado na obra pode ser visto tanto na introdução da nova medicação quanto no estilo de vida da família (visto que ambos distorcem a realidade). A cada 6 horas temos uma meia-noite, em que o véu escorre e a verdade incrustada em Ed Avery se faz visível no glamour do CinemaScope. O cineasta abusa de jogos de sombra e do espaço doméstico para contrastar e enfatizar a imagem tirânica e primitiva que o professor ganha por conta dos remédios. As sombras retomam um conceito obscuro e psicológico, como se a verdadeira essência escapasse do corpo do homem e se materializasse na realidade – assim como a verdadeira essência do ambiente familiar estadunidense escapa e se materializa nas lentes de Nicholas Ray.

E neste retrocesso cognitivo da imagem do homem americano, muitos sintomas podem ser diagnosticados: como até mesmo Truffaut disse, boa parte das falas do professor possuíam cunho fascista, como na cena da reunião escolar, em que Avery reclama sobre os métodos pedagógicos. O que a primeiro momento pode ser visto como um surto de lucidez, por meio da mise en scène, fica nítido a contradição do filme ao discurso imposto. O professor ainda chega a relacionar a inteligência de uma criança americana com a de um gorila africano. Mais tarde, em casa, Avery tenta educar o filho sozinho, e, por meio das sombras do personagem, Ray demonstra quem é o verdadeiro gorila em cena. O que vemos na tela não é meramente um entretenimento, mas um reflexo consciente, incisivo.                      

Bigger Than Life é o âmago da loucura, e talvez por isso tenha gerado tantas reações divergentes, servindo de denúncia social a múltiplos temas. Ao fim, quando Avery é levado novamente ao hospital e já repousado de seus delírios por conta do excesso de cortisona, ele acorda dizendo para apagarem o sol, que o está cegando. O CinemaScope talvez nunca tenha sido tão subversivo quanto foi nas mãos de Nicholas Ray, o qual fez com que o cotidiano familiar ganhasse cores saturadas e reluzisse uma verdade que – assim como Ed Avery disse antes mesmo de Godard – cegava.