“Da Invenção”: Paixão de Bravo (1952) por Jacques Rivette

(“De l’invention”, Cahiers du Cinéma 27, outubro de 1953)

Sem dúvida alguma, o mais constante privilégio dos mestres é ver tudo, inclusive os mais simples erros, virar-se a seu favor em vez de diminuir sua estatura. Se você está, agora, surpreso ao me ver dando o benefício desta lei ao mais recente filme de Nicholas Ray, significa que está mal preparado para apreciar um trabalho que é desconcertante e pede não por indulgência, mas por um pouco de amor. Longe de querer perdoar, deve-se amar essa falta de artifício, essa tão prazerosa indiferença a décors, à plasticidade, à uniformidade da luz, à boa índole de um papel coadjuvante; e deve-se reconhecer até no desleixo dessa verve não a caricatura, mas o exagero pueril de um cinema que é tão caro a nós, em que tudo é sacrificado pela expressão, pela eficácia, pela nitidez de um reflexo ou de um olhar.
Não vejo nenhum problema em exageros desse tipo. O próprio regozijo do autor, o qual sinto vir à tona às vezes, é consolação a muitos filmes que somente comunicam o tédio do diretor.

Mas agora quero falar da verdadeira seriedade do assunto: um trabalho de verve, pode ser, mas porque Nicholas Ray é abundante em ideias, que às vezes são canalizadas em um único grande tema – e não estou me esquecendo da maravilhosa progressão de On Dangerous Ground; ideias que, neste filme, espalham-se por todo lugar pelos incidentes da imaginação. Mas é precisamente essa imaginação que me atinge com suas mais constantes surpresas.
Ray certamente não é alguém insciente do valor estético da surpresa, nem mesmo insciente que a beleza tem o dever de impressionar; mas se a imaginação é soberana a todas as outras faculdades, seu reino certamente parece estar encolhendo diariamente por todo lugar – e dizer que a imaginação deve, primeiramente, consistir no simples prazer de filmar (assim como a liberdade criativa de um pincel numa tela) não tem a menor chance de ser levado a sério aqui. E quando falo de ideias, quero dizer ideias de mise en scène ou – se eu quisesse ser chocante sobre isso – de frames ou como os planos são justapostos. São essas as únicas ideias cuja profundidade eu desejo reconhecer hoje em dia, e as únicas que podem alcançar a forma secreta que é o objetivo de toda obra de arte. 

Quando François Truffaut compara Nicholas Ray a Bresson, realmente vemos dois realizadores que são obcecados pelo abstrato e cuja principal preocupação é sempre atingir esse semblante ideal pelo caminho mais curto – e que o caminho seja o desleixo, se for o mais curto.

Em The Lusty Men, pode-se ver como a ideia de um papel – ou de uma ideia em si – apressadamente ensaiado pode, às vezes, prevalecer sobre sua realização, sendo boa ou ruim (mas entender-se-á o quanto admiro Ray se eu o chamar de um metteur en scène, e não de diretor); como a imaginação de cada momento é apenas a preocupação em revelar, com cada novo golpe de um cinzel, a primeira e única estatua oculta.

Talvez esteja claro que a beleza não é desimportante para ele. Mas onde ele a procura (uma questão fundamental, afinal), eu observo uma certa dilatação de detalhe expressivo, que deixa de ser um detalhe para que possa tornar-se parte da trama – por isso o gosto por close-ups dramáticos, inesperados dentro do movimento da cena – e especialmente a busca por uma certa grandeza de um gesto moderno e uma ansiedade sobre a vida, uma preocupação perpétua que é paralela aos personagens; e, por último, seu gosto por paroxismo, que transmite algo de febril e impermanente aos mais tranquilos momentos.

Algumas palavras a mais. Nicholas Ray é um daqueles que lutam até o fim, e pode exaustar as possibilidades de um desenvolvimento. Tudo sempre procede de uma simples situação em que duas ou três pessoas encontram algumas concepções fundamentais e elementares da vida. E a verdadeira luta acontece em somente um deles, contra o demônio interior da violência, ou de um pecado mais secreto, que parece ser ligado ao homem e sua solitude. Pode acontecer, às vezes, de uma mulher o salvar; parece até mesmo que ela, sozinha, tem o poder para fazê-lo. Estamos bem longe da misoginia.

Nicholas Ray sempre nos ofereceu uma estória de um dilema moral em que o homem emerge ou como vencedor, ou como vencido, mas, afinal, como lúcido: a futilidade da violência, de tudo que não é felicidade e que desvia o homem de seu propósito mais íntimo.

Se a arte deve revelar “o heroísmo da vida moderna”, há poucas obras que melhor cumprem este propósito. Notamos, no entanto, que os personagens rapidamente recuam, que, quando tudo está dito e feito, o mundo dificilmente interfere, ou se o faz, é somente para prejudica-los. Salvação é um assunto confidencial. Talvez lamentaremos ao ver esses heróis recuarem a suas cabanas com tão pouco alarde; podemos, também, supor que não é sem legar seu destino ao mundo, ou às vezes prolongar a provação desnecessariamente. Mas, senão o desprezo, não é a solitude habitualmente a reverência mais adequada para a sociedade moderna?

(Traduzido por Miguel Fernandes a partir da tradução em inglês de outrem)