Entrevista com Nicholas Ray

CONDUZIDA POR CHARLES BITSCH

Entretien avec Nicholas Ray”: excertos publicados na Cahiers du Cinéma N°89, em novembro de 1958

(“C.B.” e “N.R.” correspondem, respectivamente, a Charles Bitsch e Nicholas Ray)

Charles Bitsch: Há um tema subjacente que pode ser visto em todos os seus filmes: que o mal existe em todo ser humano.


Nicholas Ray: Correto. Eu creio que vem do sentimento – misto, eu espero, com um certo discernimento – de que nenhum ser humano, homem ou mulher, é bom ou mau por completo. A questão essencial em todo retrato da vida, seja ficção baseada na realidade, ou até mesmo um realismo estrito, consiste no espectador sentir que, sob as mesmas circunstâncias, ele ou ela agiria da mesma forma, correta ou erroneamente. As fraquezas dos personagens devem ser humanas, pois, se forem, os espectadores podem reconhecer nelas suas próprias fraquezas, para que, dessa forma, quando o personagem agir como herói, eles sintam-se capazes de fazer o mesmo e identifiquem-se com o personagem. Ninguém é nem nunca foi pura e simplesmente um herói. Não sei se você já teve a oportunidade, mas eu conheci alguns heróis excepcionais, e, quando eu os disse “você foi incrível, você foi ótimo”, eles não entenderam sobre quem eu estava falando, pois fizeram seu grande ato simplesmente obedecendo aos seus instintos, a uma grandeza inata, às suas formações, ou a algo arraigado nos recessos da alma. Eles talvez não estiveram no topo da escala social; eles talvez foram muito comuns, talvez foram até menos que pessoas comuns; mas, agindo dessa forma, provaram que havia neles uma grandeza; que, quando chegou a hora da decisão, a hora de agir, embora não estivessem preparados para isto, eles se comportaram como grandes homens, e isso os marcou pelo resto de suas vidas. Alguns se tornara grandes heróis, e isso culminou em suas definhadas, pois, depois de agir tão heroicamente e ter estabelecido a reputação de um herói, eles esperaram que tudo o que fizessem posteriormente seria heroico, ou pensaram que haviam se livrado dos remorsos que tinham antes. Os erros que os criminosos cometem ocorrem pelas mesmas razões.


C.B.: Os personagens de In a Lonely Place, On Dangerous Ground e Rebel Without a Cause, todos eles têm algo em comum: são violentos. 


N.R.: Com certeza, há violência dentro deles. Há em cada um de nós: está lá em potencial. O caixa do banco, levando uma vida pacífica, conta os maços de dinheiro e então começa a odiar todos: ele conta essas notas de dinheiro até que um dia, de repente, pega a arma que mantém guardada para proteger sua caixa registradora, vai à rua e atira em uma dúzia de pessoas. É por isso que eu gosto dos inconformados: eles são muito mais sãos do que a pessoa que vive suportando o dia-a-dia durante toda a sua vida, pois esta é a mais suscetível a explodir subitamente e matar a primeira pessoa que aparecer à sua frente. Nos EUA, atos criminosos e antissociais já podem ser vistos em crianças de onze ou doze anos, mas a maioria dos atos de violência atroz – aqueles que aparecem nas manchetes dos jornais – são praticados por quem nunca cometeu crime algum antes. Não é o primeiro ato criminoso em que pensaram, mas o primeiro que cometem.


C.B: Nos seus filmes, esse tema da violência é sempre intimamente ligado ao tema da solitude. 


N.R.: Para tudo o que escrevi e para tudo com o que me envolvi, minha… marca pessoal sempre foi “Eu mesmo sou um estranho aqui”². A primeira obra de poesia que escrevi quando jovem já se tratava dessa questão. A busca por uma vida realizada é paradoxalmente, creio eu, solitária. Eu também acredito que a solitude é muito importante para o homem, desde que não o faça mal, se ele souber usá-la originalmente como… Este é um sentimento muito pessoal; é difícil de se falar a respeito […]


C.B.: Como você veio a trabalhar com Frank Lloyd Wright?


N.R.: Aos dezesseis anos, eu escrevi e produzi uma série de programas para a rádio, e, com eles, consegui uma bolsa para qualquer universidade à minha escolha. Mas não havia uma universidade que de fato ensinasse algo sobre rádio, nem sobre drama, na verdade. Então eu fui à universidade de Chicago, pois [Robert Maynard] Hutchins estava lá e pretendia testar um novo sistema educacional. Mas então eu me tornei um tipo de refugiado do ensino superior ao passo que senti que tudo que eu fosse aprender com o ensino universitário clássico deveria ser desaprendido para que eu pudesse seguir carreira no drama, na área que eu havia escolhido – e posteriormente descobri que eu estava certo. Arquitetura é a espinha dorsal de todas as artes, sabe?! Se é a verdadeira arquitetura, engloba todos os domínios. A simples palavra “arquitetura” ´pode ser aplicada tanto a uma peça quanto a uma trilha musical ou a um modo de vida. Frank Lloyd Wright deu a todos os jovens do mundo a oportunidade de conhecer, de praticar arquitetura; de levar uma vida em comunidade e compartilhar experiências e pontos de vista. Não havia muitos estadunidenses entre os trinta e cinco jovens que foram os primeiros a juntar-se a Frank Lloyd Wright, mas havia nicaraguenses, japoneses, franceses, dinamarqueses, suíços e chineses; alguns deles escultores como Naguchi, músicos como Brooks, e outros pintores.


C.B.: Não se pode perceber a influência de Frank Lloyd Wright na arquitetura das casas de On Dangerous Ground e Johnny Guitar?


N.R.: Não. Eu diria que a influência mais óbvia que Wright exerceu em mim, à parte de um tipo de inclinação filosófica… não, não uma inclinação filosófica, mas uma maneira de se observar as coisas, é o meu gosto por CinemaScope. Eu gosto da linha horizontal, e as horizontais eram essenciais para Wright. Eu gosto muito do formato CinemaScope, e quando tenho a liberdade de usá-lo como eu gostaria, como em Rebel Without a Cause, fico muito satisfeito em fazê-lo.
Mas nos dois filmes que mencionei, a arquitetura era tão determinada pelo tempo e espaço, que não se parecia nem um pouco com o conceito de Frank Lloyd Wright e não devia nada a influência que ele exercera em mim. Eu usei objetos, como o tronco de árvore para Ida [Lupino], que são os objetos que poderia achar-se na sala de estar de uma vila de Frank Lloyd Wright; mas na estrutura, na arquitetura em si, a influência de Frank Lloyd Wright é inexistente. No entanto, em Johnny Guitar… é difícil dizer. Eu precisava de um momento arbitrariamente dramático, por assim dizer, para posicionar a brancura do vestido de Vienna contra as rochas vermelhas; mas acho que raramente se pode determinar a influência exata à qual se foi submetido, de onde vem o gosto por alguma coisa, ou a que esse gosto foi submetido conforme evoluiu. Eu seria absolutamente incapaz de dizer-lhe por que eu queria seguir minha vida no teatro ou na música. Seria por conta de um sentimento de revolta, de uma influência particularmente impetuosa, de uma necessidade de atrair atenção, ou de alguma outra coisa? Eu não sei […]


C.B.: Você nos falava que nenhum dos seus filmes o satisfez por completo. Pode nos dizer como seria o seu “filme ideal”?


N.R.: Eu não sei. Foi sempre o meu objetivo, mesmo quando fazia o que eu chamaria de “filmes sob encomenda”. À época eu estava sob contrato. Só se pode recusar um certo número de ofertas e às vezes se é forçado a escolher um dentre uma lista desencorajadora de projetos; mas, por outro lado, as contas devem ser pagas, os filhos devem ser educados, etc. Finalmente eu passei desse estágio, mas tive que enfrentá-lo como todas as outras pessoas. Eu tive, acho, mais sorte do que a maioria dos diretores, já que, à parte de duas ou três exceções, eu nunca fui forçado a fazer um filme sem ter minha palavra. Em mais de 75% dos casos eu pude trabalhar no roteiro, dar continuidade às minhas ideias e fazer mudanças ou improvisar no set. Fico observando, ponho uma câmera nas minhas costas e vou à caçada.


C.B.: Você improvisa muito quando filma?


N.R.: O final de In a Lonely Place, por exemplo, foi inteiramente improvisado. Em Rebel Without a Cause eu improvisei, numa noite, em casa, toda a cena em que Jimmy (James Dean) retorna aos seus pais após a tragédia. A cena estava me incomodando muito: de acordo com o script, deveria ocorrer no quarto da mãe, mas me parecia algo muito estático. Então, numa noite em que Jimmy apareceu para me ver, comecei a discutir a cena com ele; pedi-o para que fosse ao quintal enquanto eu fizesse o papel do pai na sala de estar. Dei a Jimmy duas instruções contraditórias: primeiro, ir ao andar de cima sem ser ouvido, e então, ao mesmo tempo, sentir a irresistível necessidade de conversar com alguém. Eu logo sintonizei a televisão num canal em que os programas haviam terminado e fingi estar dormindo. Então, Jimmy entra, passa por mim para ir ao andar de cima, e é assim que o movimento contraditório consegue o seu melhor: ele cai pesadamente no sofá, com uma garrafa de leite, e espera que eu acorde; naquele mesmo momento, eu gritei: “Agora sua mãe desce as escadas!”, e então eu soube que tinha encontrado a dinâmica da minha cena. Eu fiz o designer vir à minha casa, e o set que usamos em Rebel foi copiado da minha própria sala de estar, onde improvisamos a cena. É uma maneira muito satisfatória de trabalhar; também foi daqui que tiramos a ideia de mostrar a mãe descendo as escadas do ponto de vista de Jimmy. O planetário, os garotos no carro e muitas outras cenas também foram improvisadas.


C.B.: Há algo curioso sobre o plano da mãe descendo as escadas: você o usou em Rebel Without a Cause e em Hot Blood. No primeiro, é filmado a partir do ponto de vista de Jimmy; mas em Hot Blood, quando a câmera volta para a horizontal, os dois personagens são enquadrados para que não seja mais filmado do ponto de vista de Cornel Wilde. 


N.R.: Isso mesmo. E foi um erro reenquadrar os dois personagens. Para ser honesto, o que eu sempre tento fazer, sempre que possível, é colocar a câmera no lugar de um ator, para fazê-la atuar para ele e deixá-la tornar-se o ponto de vista de alguém por quem sinto simpatia ou antipatia. Este plano é o “princípio do ponto de vista” explorado ao extremo, e vem da maneira como eu trato a câmera, fazendo-a buscar a verdade ao deixá-la atuar para mim, como um ator.


C.B.: Você é tão interessado na câmera como é no roteiro ou nos atores?


N.R.: Eu sou interessado na estória e nos personagens. A câmera é um instrumento, é o microscópio que permite detectar a “melodia do olhar”. É um instrumento maravilhoso porque seu poder microscópico é, para mim, o equivalente da introspecção num escritor; e o desenrolar do filme na câmera corresponde, na minha opinião, ao trem de pensamento do escritor. Mas se o personagem sobre o qual eu estou trabalhando não tem nada a se fotografar, então a câmera se torna inútil; tudo o que se está fazendo, então, é brincando com o trem elétrico mais caro do mundo³. 


C.B.: Geralmente se tem a impressão de que, para filmar uma cena, você trabalha da seguinte maneira: começa-se por filmá-la em um longo plano e então se faz os cortes. 


N.R.: Não posso responder definitivamente a essa questão, pois depende. Faço-os ensaiarem a cena primeiro; às vezes eu começo por filmá-la em um longo plano para dar aos atores o humor com o qual eles devem interpretar – ocasionalmente, eu até filmo enquanto houver filme na câmera. Em Bigger Than Life, eu filmei a cena da escada em um único plano de nove minutos, e quando olhamos o resultado, todos disseram: “Não faça cortes, não faça corte algum! É a cena mais sufocante que já vimos!”. Antes disso, um roteirista tinha lido a cena e me disse: “Realmente não consigo ver como você conseguirá fazer isso”. Tivesse eu escutado aqueles que me avisaram para não fazer nenhum corte, a dinâmica da cena teria sido reduzida a nada. Eu creio que, na verdade, eles deixaram-se impressionar pela performance técnica, enquanto os atores, depois de ensaiarem, estavam apenas começando a entender cena; então precisávamos ir ainda mais além. Mas às vezes eu começo de uma maneira bem diferente: com um close-up. Isso pode depender do ator, da atmosfera ou de uma necessidade técnica que o ator tem de enfrentar – e eu tenho de ajudá-lo a se preparar para isto. Não tenho regras rígidas ou definitivas.


C.B.: Seu método de filmagem não depende do estilo que você dá ao seu filme? Alguém teria uma tentação em dividir sua obra em duas categorias: algumas obras, como Rebel Without a Cause, Bigger Than Life ou Johnny Guitar, têm um estilo teatral; outras, como On Dangerous Ground ou They Live by Night, um estilo romanesco. 


N.R.: Não, eu acho que não, já que eu mesmo adaptei They Live by Night e On Dangerous Ground, e também escrevi a estória original de Rebel; então não há por que um ser relacionado a um romance e outro a uma peça. Mais cedo, quando eu estava falando sobre a câmera, eu trouxe à tona o escritor. Na verdade, um filme pode ser relacionado a um romance desde que as sentenças sejam cenas e os capítulos, sequências; mas quando se está trabalhando num roteiro, prontamente se dá uma estrutura de peça: três atos ou, como em Bitter Victory, um prólogo, dois atos e um epílogo. Então o cinema fica no limite entre o romance e o teatro. Mais uma vez, o único método que posso dizer que tenho é trabalhar no ator. Dou grande importância ao ator. Elencando um filme, para preencher uma dúzia de partes, eu vejo quase trezentos atores, converso com eles… e às vezes faço a escolha errada. Mas nem mesmo nessa questão eu sigo alguma regra precisa, pois deve-se adaptar-se ao ator, já que cada um tem uma essência distinta. Não penso que qualquer diretor possa afirmar que seu estilo consiste nos longos planos, nos planos médios ou nos close-ups, a menos que ele tenha a mente de um funcionário público. Algo é certo: tempo e espaço não desempenham papel algum na construção de um filme; o cinema é insciente deles; uma cena pode levá-lo a outro mundo, a outra época. Simplesmente tenta-se capturar, fugidiamente, momentos de verdade, seja por pensamento, por intuição, por instinto, ou… bem raramente… por flashes de inspiração. E esses momentos de verdade podem ser ou cômicos ou trágicos, se se estiver lidando com reis grandes o bastante para caírem. É assim que um filme é feito; o resto é simplesmente uma questão de olhar a vida e as pessoas.

Notas:

1 – O filme aqui escolhido não tem relações diretas com o texto; foi escolhido por questões meramente representativas, sem critérios rigorosos. Aliás, este é o documentário sobre o qual se fala na nota abaixo;

2 – “Tenho grande respeito por uma arma; aliás, eu mesmo sou um estranho aqui”: esta fala é dita por Sterling Hayden no papel homônimo do filme Johnny Guitar (1954). Eu mesmo sou um estranho aqui (I’m a stranger here myself) também é o título de um documentário estadunidense sobre Ray (diretor: David M. Halpern, 1974);

3 – A referência é a Orson Welles, que é conhecido por a ter dito a Richard Wilson enquanto era apresentado ao estúdio do maquinário da RKO, em 1940: “Esse é o maior conjunto de trens elétricos que algum garoto já teve!”(“This is the biggest electric train set any boy has ever had!”. Veja, por exemplo, Joseph McBride, Orson Welles, Londres, Secker & Warburg; Nova York, Viking, 1972, p. 31;


(Traduzido por Miguel Fernandes a partir da tradução em inglês de Liz Heron)