“O Amado Cineasta”: Quem foi Jesse James (1957) por Jean Luc Godard
(“Le cinéaste bien-aimé”, Cahiers du Cinéma N°74, p. 51-53, agosto – setembro de 1957)
Não há dúvidas de que devemos este remake do filme de Henry King ao livro de James D. Horan que nos apareceu em 1949. Intitulado The Desperate Men, tratava-se de um estudo bem detalhado da vida dos irmãos James, baseado em documentos de arquivos restritos, antes não disponíveis ao público. Mas também não há dúvidas de que Nicholas Ray reagiu a essas revelações de uma maneira completamente pessoal, diferentemente do seu produtor Herbert B. Swope. Onde o homem de negócios viu na “true story” um meio para atrair os espectadores cansados de uma estória já contada de todas as formas possíveis, o metteur en scène, por outro lado, viu a lenda já tomando forma por trás dos “fatos reais” e da existência, da essência – o que explica as constantes rixas entre o produtor e o diretor. Nicholas Ray, tal como Orson Welles, deixou Hollywood abatido antes de as filmagens terminarem, batendo a porta às suas costas.
Essas questões preliminares não são insignificantes a ninguém que estiver prestes a ver The True Story of Jesse James com a deslumbrante memória de Rebel Without a Cause ou Bigger Than Life – para citar apenas dois filmes – diante de seus olhos. O que Ray pretendia nos oferecer nesse seu retrato do célebre fora-da-lei era provavelmente um Rebel Without a Cause mais detalhado. Basta conhecer todos os fatos sobre Jesse James para ser convencido disso.
No dia 7 de setembro de 1876, os irmãos James e sua gangue roubaram o pequeno banco em Northfield. Apesar de planejada por um longo tempo, a incursão falhou porque sua execução foi indecisa demais – uma indecisão vinda do temperamento cada vez mais excêntrico de Jesse. A cidade inteira ousou sair em perseguição aos irmãos, que logo se viram sozinhos com uma multidão a persegui-los. Esse primeiro fracasso veio após quinze anos de um sucesso ininterrupto que tornara os fazendeiros pacíficos Frank e Jesse em bandidos formidáveis. Filhos de um respeitável ministro do Mississippi, suas infâncias foram profundamente marcadas pela Guerra de Secessão. Em 1863, Jesse se juntou com seu irmão aos guerrilheiros de Quantrill, cuja reputação era alta e sangrenta. Lá ele aprendeu a matar “pela Causa” em incursões terríveis à cidade vizinha, Kansas, tradicionalmente nortista em sua simpatia. Após o término do conflito, tendo se tornado um líder de gangue para resolver algumas questões pessoais, Jesse começou gradual e friamente a acumular assassinatos – ainda um rebelde, mas não sem causa.
Jesse James foi um rapaz que matou muitos
Ele roubou o trem em Glendale
Ele tirou do rico e deu ao pobre
Ele tinha uma mão, um cérebro, um coração
Assim canta-se a balada – mas a realidade teve um lado mais obscuro. Associados aos irmãos Younger, Frank e Jesse James assaltaram trem atrás de trem, fazenda atrás de fazenda; saquearam banco atrás de banco até o dia em que os funcionários de Northfield Bank resistiram. Esse episódio deveria ter sido uma previsão trágica da morte de Jesse, atingido pelas costas por seu vil enteado, Bob Ford. Foi assim que lenda tomou o fora-da-lei, tal como o fez com Billy The Kid, também atingido pelas costas por seu próprio amigo, o Xerife Pat Garrett; ou como Sam Bass, que caiu numa emboscada depois de ser traído por um pérfido informante.
Decerto que o amado Jesse James¹ foi cordialmente odiado durante toda a sua vida. Eram as façanhas desse homem triste e solitário que Nicholas Ray queria descrever. Mesmo que as intrigas no set possam ter atrapalhado essa tarefa delicada, não se deve esquecer a ambição que a deu início. Disso o leitor está avisado. Deve-se julgar The True Story of Jesse James nas intenções.
Que algo tenha dado errado da perspectiva da produção, quanto a isso não há dúvidas; mas não quanto à direção, na qual cada plano carrega a marca indelével do mais peculiarmente moderno dos cineastas. O que significa dizer isso? Como se reconhece a assinatura de Nicholas Ray? Primeiro, pelas composições, que podem enquadrar um ator sem sufocá-lo, e que conseguem fazer ideias tão abstratas como Liberdade e Destino serem claras e palpáveis. Também, como pontuou Jacques Rivette, pelo aparato da montagem, um feito de todas as obras de Ray, que consiste na súbita inserção – numa cena de vários personagens – de um plano de um dos personagens que apenas participa indiretamente da conversação que presencia. Finalmente, por uma sensibilidade à décor, que nenhum outro diretor americano desde Griffith conseguiu usar tão vívida e poderosamente.
Não é passível de esquecimento o salto duplo dos irmãos James ao rio e seu enquadramento, o ataque ao trem filmado em uma atmosfera quase sobrenatural pelo incrível Joe MacDonald; ou o bando de cavaleiros misteriosos vestidos de capas brancas, cavalgando ao amanhecer pelas planícies de Minnesota. Não se precisa de falsa modéstia: Nick Ray poderia ir ao cinema ver este filme que ele repudia.
Nota:
1 – Na França, o filme foi intitulado “Le Brigand bien-aimé” (em tradução: “O Amado Bandido”, ou “O Bandido Amado”, se preferir; [N. do T.]
(Traduzido por Miguel Fernandes a partir da tradução em inglês de Tom Milne)