“Ou… Ou Então…”: Delírio de Loucura (1956) por Éric Rohmer
(“Ou bien… ou bien…”, Cahiers du Cinéma N°69, página 41, março de 1957)
Nicholas Ray tem apoiadores o suficiente entre nossos leitores para que eu possa elogiá-lo sem preliminares. Mas ainda posso facilmente ver como seu último filme pode ser chocante aos olhos daqueles que requerem um certo conteúdo literário em uma obra cinematográfica. Bigger Than Life não é um melodrama; se fosse, defendê-lo, para certas pessoas, seria mais fácil. Irei, portanto, limitar-me declarando-me culpado: considerarei o estilo, e apenas incidentalmente mencionarei as convenções inerentes ao gênero.
Podemos recear ataques a este filme em dois aspectos. O primeiro é precisamente pelo fato de misturar gêneros que nada têm em comum com as categorias acadêmicas do cômico e do sério, nem com aquelas da fábula filosófica ou do conto popular. Soturnamente acompanhando o tom do realismo psicológico e da solenidade teatral estão um certo distanciamento intelectual e um pathos sincero. Essa combinação nos leva ao constrangimento, algo que não costumamos sentir quando lemos Sartre ou Faulkner.
Mas contenhamo-nos e vamos ao segundo aspecto, aquele que parece ser inconcebível basear uma tragédia inteira nas propriedades de um remédio. Digo “propriedades” pois, apesar de o medicamento ser abusado, não é esse abuso e nem a fraqueza por ele implicada que formam o tema desse drama. Ed Avery, um professor em uma cidadezinha estadunidense, é acometido por uma doença previamente fatal, uma inflamação nas artérias. Somente a cortisona pode salvá-lo, mas consumir este tão pouco conhecido hormônio tem seus riscos. Doenças neurais e até mentais devem ser temidas. Deparamo-nos, então, com aquilo que parece ser um puro drama médico-científico, isento de qualquer conteúdo moral ou psicológico.
Seria tão audacioso falar de tragédia mais uma vez, como fizemos a respeito de Rebel Without a Cause? Tragédia compreendida em seu sentido nobre e absoluto, e não aquele que se é considerado no jornal da tarde. Uma criança morrendo de inoculação vacinal só é “trágico” se se envolver estética; se a ciência, por exemplo, desempenhar o papel de um destino moderno, uma deusa misteriosa que concilia o bem e o mal, à maneira do destino antigo.
Mas essa ideia mal é sugerida no filme. Mesmo se os diretores disserem que está lá, o contexto a não enfatiza. O que se faz realmente claro são os sintomas da doença, do delírio, que não é um delírio qualquer. O tratamento mal começa e, mesmo antes de se passar da dose prescrita, Avery já se sente maior. Ele sente sua confiança e sua ambição crescerem. Ele profere teorias que, tiradas de contexto, são perfeitamente lógicas, demasiado perfeitas. Ele está literalmente “possuído” por um tipo de demônio da lucidez; não há contradições em seu discurso. Na escola, ele se levanta contra os novos métodos educacionais, e até mesmo a escolha de suas palavras para denunciar certos conceitos pedagógicos populares mostram que o diretor – ou os diretores – não queriam defendê-los. Esse lunático, então, possui uma certa sabedoria, mesmo que percebamos ao final que essa sabedoria é, na verdade, loucura.
A cortisona não desempenha o papel de um deus ex machina, mas de um catalisador. Admitamos que seria muito mais convincente, de um ponto de vista literário, se essa loucura viesse de uma causa, de um excesso de lógica, por exemplo; ou da fúria que é constante nos personagens de Nicholas Ray; ou até mesmo da monotonia da vida moderna, a impaciência para com a força de trabalho das máquinas ou a racionalização do trabalho e do prazer. Mas entendemos que, diferente de um romancista, um realizador está interessado menos na gênese da loucura do que em seus efeitos. Estes nos são apresentados um atrás do outro, sem uma progressão muito demarcada, como diferentes variações de um tema. Avery demonstra sinais de suas desilusões de grandeza depois, em casa. Ele mostra ao filho e à esposa quão medíocre eles são. Se não fosse por seus deveres como pai, ele abandonaria sua família em busca de um dever mais nobre, o de transformar o mundo através da educação.
Conforme o filme progride, a lógica interna da doença de Avery torna-se aparente, a ponto de desconsiderarmos sua causa original. Aliás, essa droga, que é um verdadeiro “estimulante”, apenas aumentou uma tendência já presente, cujos sintomas nós notamos antes de o tratamento começar. Avery havia dito “nós somos medíocres” na mesmíssima noite em que desmaiou, acometido por seu primeiro ataque. Então, sob influência da cortisona, ele se abre a uma tentação que não é somente vaidade, tirania ou crueldade; é uma tentação mais universal, pois expressa esse desejo – presente em cada um de nós – de manter a ordem das coisas de acordo com nossa vontade. Poder-se-ia dizer que essa tentação é estética, pois esse delírio controlador almeja substituir a moral; e, longe de afirmar uma gana por poder, recusa-se a considerar a natureza especial do indivíduo e a generalidade da ética.
Se eu deliberadamente usar um termo caro a Kierkegaard, não é porque penso que Bigger Than Life ilustra a teoria de tragédia que o sacrifício de Abraão inspirou no filósofo dinamarquês. Mas não se precisa ter lido Temor e Tremor para se enxergar o símbolo do paradoxo e da fé nessa cena bíblica. E essa referência ao ato moral mais paradoxal possível naturalmente se encaixa no final dessa série de paradoxos. Avery, traindo o espírito das Sagradas Escrituras por seu significado literal, decide cortar a garganta de seu filho, o garoto inquieto e apático que foi pego escondendo o tão precioso frasco violeta de cortisona.
Essa referência bíblica seria pedante (é até comum nos EUA) se não fosse justificada por essa loucura pedante. Assim como a Electra de O’Neill nos deixa paralisados, essa referência também o faz. Mesmo que seja um pouco arbitrária, parece pertencer à série de liberdades que os grandes pintores do último século tomavam tranquilamente. Até mesmo no contexto mais realista, as obras de Nicholas Ray contêm – e eu retorno bruscamente ao primeiro dos dois aspectos contra o filme, pois, aqui, forma é indissociável de conteúdo – certas simplificações ou características exteriores à retórica comum da tela. Decerto que ele é mais arquiteto (sua primeira profissão) do que pintor, se consideramos um pintor como alguém que se diverte com imagens. Ele é adepto à arte de brincar com a totalidade do set, e, apesar de seus frames serem deveras compactos, ele consegue evitar que sejam pesados. Todavia, ele ainda é um pintor, não somente por usar o poder das cores tão bem – que são mais expressivas do que decorativas (o vestido alaranjado de Barbara Rush, o violeta daquele frasco, o vermelho da blusa do garoto, acentuado por uma harmonia predominantemente bege e pelo talento do cameraman Joe McDonald) – mas por frear ou acelerar demais o compasso; inserindo uma pausa que dura nem sequer uma fração de segundo, ele dá ao mais simples gesto uma qualidade eterna, fazendo-o, portanto, tão expressivo quanto belo. Ele é capaz de filmar os planos mais importantes de seus filmes: uma mulher enchendo uma banheira com uma chaleira ou portando-se como que travada em seu novo vestido; uma criança segurando uma bola ou mexendo numa pilha de roupas; ou, novamente, ajoelhando-se em sua cama, entregando a bola ao pai, que entra no quarto.
Fora do contexto dramático, esses gestos certamente perdem parte da expressão e da beleza, mas tentar dissociá-los é tão ilógico quanto separar o arabesque de uma pintura de Rafael. Faço essas comparações absurdas de propósito, para condenar uma comparação que é facilmente feita entre filmes e pintura: o realizador trabalha seu filme usando gestos pesquisados, levemente irreais, e artificiais, assim como o pintor esboça os elementos de sua composição. E é em situações arbitrárias ou, mais especificamente, em situações dependentes de um fato contingente que tais gestos acham o momento exato para serem exprimidos. Perceba quantos close-ups são possíveis devido à mera existência do pequeno frasco de cortisona. Um motivo puramente psicológico não teria possibilitado esses achados.
Somos livres para enxergar essas coisas como saídas fáceis (quanto a mim, tenho ressalvas somente a respeito da cena de luta, acrobática demais, e as cenas no hospital) e nos direcionarmos aos cineastas que não desprezam outras saídas estéreis. Somos livres para enxergar a presença das banalidades dos próprios EUA: no teatro de Sófocles (uma de suas tragédias, Ajax, tem um louco como herói), acha-se muito mais truísmo familiar a Atenas do quinto século antes de Cristo. Há algo ingênuo na forma como Hollywood discute sobre questões da mente, o que choca Nova Iorque tanto quanto choca Paris. Mas, continuando minha comparação com a pintura, pensaríamos em nos ofender com o costumeiro anacronismo dos pintores Renascentistas? Condená-los-íamos por não vestir os personagens bíblicos como verdadeiros hebreus? E a conquista da cor local, não veio às custas da arte nos séculos que se seguiram?
Essa estória certamente seria o tema de um romance medíocre, a léguas de distância de – digamos – Moby Dick. Mas não estamos tratando de filmes? A tragédia, a profundidade, a beleza desse filme vem de relacionamentos que a literatura teria dificuldades em descrever, se é que fosse capaz. O verdadeiro tema de Bigger Than Life talvez não seja nem a medicina nem a loucura, mas a vida, a vida cotidiana, essa vida rotineira cuja estória pode ser contada somente por uma estória extraordinária como esta. Evocada pela arte, a mediocridade da existência cotidiana mal nos interessa, mas ao mesmo tempo é o que mais nos preocupa e nos afeta. Pois, sem essa mediocridade, da qual participamos de uma forma ou de outra, não seríamos capazes de medir o extraordinário. As maiores obras literárias foram capazes de pincelar esta zona, essa linha tênue entre o drama e a vida. Mas a câmera, como um microscópio, detecta uma grande superfície onde víamos somente uma linha. Digo isso pois Ray nos mostra uma mulher na cozinha, um homem no banheiro, uma criança à televisão; coisas que muitos outros fizeram antes dele – e estes só conseguiram nos entediar. O que importa é o tom com que ele os mostra, um tom que não deixa de evocar, mutatis mutandis, aquele de Journey to Italy; aquela atenção tão precisa às pequenas coisas e a recusa de aproveitar somente suas qualidades pitorescas, os olhares que traem as questões do amor; mais que curiosidade, medo ou qualquer outro sentimento, essa forte sensação de apegos terrenos do homem e sua liberdade. Nesse combate, o qual o materialismo parece já ter ganho, a alma é quem vence; não por causa dessa tontura oportuna que toma o braço de Avery, mas pelo ar que se respira, do início exato ao último plano. Um ar de mesma qualidade, no sentido de ser gracioso sem um pathos, como as imagens finais de Ordet ou Europa 51. Também por causa da fé que se enxerga nos olhos de Barbara Rush ou do garoto; uma fé atingida pela incerteza, mas, ainda assim, sempre presente pela virtude da absurdez.
Talvez eu esteja indo longe demais ao fazer da esposa de Avery o receptáculo dessa fé (fé na cura, fé no amor, fé sem um objeto bem definido). Essa fé sem a qual Abraão não passa de um assassino comum. Todavia, a conexão que se pode fazer com os outros filmes de Ray permite esta conjuntura. Há unidade demais entre os temas dele; afinidade demais entre seus personagens para que ele não possa não ter nada a dizer senão os fatos.
É por isso que, com todo respeito a François Vinneuil, creio que seja plausível olhar além da descrição de casos médicos e, tratando-se de Bigger Than Life, considerar a contribuição de uma mise en scène concebida não apenas como meio de ênfase, mas como uma criação verdadeira.
Ou realmente há “algo” neste filme – aquela qualidade indescritível que encontramos, apesar da diversidade de estilos e de temas, nas maiores obras do ecrã –, ou então estamos errados a respeito dessas grandes obras também. Ou o paradoxo é tal, que uma estória desse tipo – técnica, sem qualidades explicitamente trágicas – está particularmente apta a revelar a própria essência do cinema (aquele mundo além que mencionei em minha crítica a Moby Dick), ou então todo o cinema é um mero entretenimento de sábado à noite.
(Traduzido por Miguel Fernandes a partir da tradução em inglês de outrem e, também, a partir do texto original em francês)