“Para Além das Estrelas”: Amargo Triunfo (1957) por Jean-Luc Godard
(“Au-delà des étoiles“, Cahiers du Cinéma N⁰79, p.44-45, janeiro de 1958)
Havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura (Rossellini), a dança (Eisenstein) e a música (Renoir)¹. Doravante há o cinema, e o cinema é Nicholas Ray.
Por que ficamos impassíveis aos fotogramas de Amargo Triunfo, mesmo quando se sabe que são esses os fotogramas do mais belo dos filmes? Pois não expressam nada — e por boas razões.
Enquanto um único fotograma de Lillian Gish é o suficiente para simbolizar Lírio Partido — ou um de Charles Chaplin em Um Rei em Nova York, Rita Hayworth em A Dama de Shanghai, e até Ingrid Bergman em Elena —, um fotograma de Curd Jürgens perdido no deserto de Tripoli ou de Richard Burton vestindo um albornoz branco não tem relações com a presença de Curd Jürgens ou Richard Burton na tela. Um abismo separa o fotograma do filme em si. Um abismo que é um mundo inteiro. Qual? O do cinema moderno.
É nesse sentido que Amargo Triunfo é um filme anormal. Não nos interessamos mais por objetos, mas por aquilo que se situa entre os objetos e, por sua vez, torna-se um objeto. Nicholas Ray nos força a considerar real algo que sequer se considerava irreal, algo que nem sequer se considerava. Amargo Triunfo é como aqueles desenhos nos quais uma criança deve achar o caçador e, à primeira vista, parece somente uma mistura de linhas sem sentido.
Não que alguém deva dizer que “por trás da investida do Comando britânico ao QG de Erwin Rommel há um símbolo de nosso tempo”, pois não há “por trás” ou “antes”. Amargo Triunfo é o que é. Não se acha realidade por um lado — o conflito entre Tenente Keith e Capitão Brand — e ficção por outro — o conflito entre coragem e covardia, medo e lucidez, moralidade e liberdade, ou o que quer que seja.
Não. Não é mais uma questão de realidade ou ficção, ou de uma transcendendo a outra. É uma questão de algo bem diferente. O quê? As estrelas, talvez, e homens que gostam de observá-las e sonhar.
Esplendidamente editado, Amargo Triunfo é excepcionalmente atuado por Curd Jürgens e Richard Burton. Com …E Deus Criou a Mulher, isso faz com que se possa acreditar duas vezes em um personagem criado por Jürgens. Quanto ao Richard Burton, que tem se saído muito bem nos seus filmes anteriores, bons ou ruins, quando dirigido por Nicholas Ray, ele fica absolutamente sensacional.
Um tipo de Wilhelm Meister 1958? Pouco importa. Seria um eufemismo dizer que Amargo Triunfo é o mais goethiano dos filmes. Qual é o propósito de se refazer Goethe, ou de refazer qualquer coisa — Dom Quixote ou Bouvard e Pécuchet, J’accuse ou Viagem ao Fim da Noite — sendo que já foi feito? Que é amor, medo, desprezo, perigo, aventura, desespero, amargura, triunfo? Que importa, se comparado às estrelas?
Nunca antes os personagens em um filme pareceram tão perto e, ainda assim, tão distantes. De cara com as ruas desertas de Benghazi ou as dunas, subitamente pensamos, pelo átimo de um segundo, noutra coisa: nas lanchonetes do Champs-Élysées, numa garota por quem alguém se apaixonou, tudo e qualquer coisa, em mentiras, na traição das mulheres, na frivolidade dos homens, jogando na máquina de caça-níqueis. Pois Amargo Triunfo não é um reflexo da vida, é a vida em si transformada em filme, vista por trás do espelho² o qual o cinema intercepta. É, simultaneamente, o mais direto e o mais secreto dos filmes, o mais sutil e o mais cruel. Não é cinema, é mais que cinema.
Como poderia se falar de um filme como este? Qual é o sentido em dizer que o encontro entre Richard Burton e Ruth Roman enquanto Curd Jürgens os observa é editado com um brio fantástico? Talvez essa fora uma cena na qual deveríamos ter fechado os olhos. Pois Amargo Triunfo, assim como o Sol, faz-nos fechá-los. A verdade cega.
Notas:
1 – Essa classificação pode parecer arbitrária e, sobretudo, paradoxal – mas não o é. Griffith certamente era o inimigo declarado do teatro, mas do teatro de seu tempo. A estética de The Birth of a Nation ou One Exciting Night é a mesma de Richard III ou As You Like It. Se Griffith inventou o cinema, ele o inventou com as mesmas ideias com que Shakespeare o fez no teatro. Ele inventou o suspense com as mesmas ideias com que Corneille inventou a suspensão. Similarmente, dizer que Renoir é próximo à música e Rossellini à pintura, quando se sabe que o primeiro adora as bordas e o último odeia as telas, é dizer simplesmente que o autor de The River tem uma afinidade com Mozart, e o autor de Europa 51, com Velázquez. Fazendo uma simplificação grosseira, um almeja retratar a alma; o outro, o personagem.
Claro que esta é uma tentativa de definir um cineasta pelo que é mais profundo em seu âmago, pela qualidade de suas invenções. Em um filme de Renoir, por exemplo, a figura três corresponde a um tempo, enquanto que, para Eisenstein, a mesma figura corresponde a uma obsessão espacial. Eisenstein é a dança porque, tal como ela, ele busca nas profundezas dos seres e das coisas a imobilidade nos movimentos; [N. do A.]
2 – “Por trás do espelho”: o título francês do filme Bigger Than Life, de Nicholas Ray, é Derrière le Miroir (Atrás do Espelho); [N. do T.]
(Traduzido por Miguel Fernandes a partir da tradução em inglês de Tom Milne)