“Paul E Virginie Casaram-se À Noite”: Amarga Esperança (1948) por Jacques Doniol-Valcroze

(“Paul et Virginie se sont mariés la nuit…”, Cahiers du Cinéma N°5, setembro de 1951) 

É quase que um filme maldito. Foi, de certa forma, banido nos Estados Unidos e só obteve um certo sucesso quando estreou na Inglaterra há dois anos. Teria direito à casa no Festival do Filme Maldito de 1949¹, mas não sabíamos do filme à época. No ano seguinte, foi apresentado no Rendez-vous de Biarritz diante de uma audiência completamente indiferente, que o viu somente como um filme comum de gangster – eu vi-o lá pela terceira vez. Impactou-me ainda mais do que nas primeiras assistidas, dando-me uma forte emoção que eu não havia sentido diante de uma tela até a projeção de Diary of a Country Priest.

They Live by Night, finalmente apresentado ao público francês – que discernirá, eu espero, uma marca de profunda originalidade –, era um “filme B” originalmente. As filmagens foram feitas em uma época em que, tendo enfrentado os malogros de outras produções maiores, Dore Schary, um dos mais inteligentes produtores estadunidenses de hoje, decidiu dar uma chance com grande liberdade criativa a alguns jovens diretores ao confiá-los filmes de baixo orçamento – assim Crossfire e They Live by Night foram feitos. Não sei qual será o destino cinematográfico de Nicholas Ray, cujos filmes subsequentes foram menos impactantes, mas essa sua adaptação do romance de Edward Anderson (Thieves Like Us) soa de forma diferente na clássica categoria de filmes de “gangue” e assume a aparência de uma acusação, surpreendente em um universo cinematográfico em que um dos Dez Mandamentos é o de que o crime não compensa.

Não se preocupem, meus bons, o jovem Bowie será “expurgado” e jogado a alguns metros de distância de sua jovem esposa grávida, que, educada por este exemplo cruel, criará seu filho à maneira correta. No entanto, esse triste bandido não estava tão longe assim de cruzar a fronteira e encontrar o merecido descanso no México depois de umas semanas de fugas exaustivas. Esse epílogo é remanescente do melhor filme de Fritz Lang nos EUA, You Only Live Once, que conta a trágica estória de um “presidiário” que tenta reconstruir sua vida normal e, “barrado” em todo lugar, acaba sendo alvejado com sua namorada enquanto tenta cruzar a fronteira. Aqueles que viram o filme provavelmente não se esqueceram da cena da fuga na neblina, e tampouco daquela fuga pungente ao fim: sendo caçados numa floresta, a alguns metros de distância da fronteira, o casal (Henry Fonda e a inesquecível Sylvia Sidney) procede seus últimos esforços enquanto a polícia silenciosamente os acompanha. A mulher é atingida primeiro; o homem a carrega e a encoraja, sem perceber que ela já está morta, e então também é atingido. 

A emoção que se emerge de They Live by Night é desse mesmo tipo. A arte do diretor consiste em fazer-nos ficar do lado do fora-da-lei sem nunca aludir a questões de ordem pública, tendo interesse no ponto de vista pessoal e íntimo desse herói que, visto desse ângulo, aparece como uma vítima, uma preza de uma injustiça monstruosa. Assim sendo, o filme se dá como uma tragédia de destino negativo: o destino do herói parece inevitável e irreversível; o sistema faz com que ele escolha automaticamente a carta errada a todo momento. 

A construção do filme, o atamento progressivo da trama que envolve os dois heróis através de um jogo de massacre que poupará apenas a jovem mulher (deve sobrar alguém para chorar) parece-me digna da maior admiração. Além disso, há duas ou três sequências no filme que são, cada uma delas, alguns dos maiores momentos do cinema estadunidense nos últimos dez anos: a cena deslumbrante do assalto ao banco, vista do ponto subjetivo e vantajoso de Bowie, de dentro de um carro estacionado do outro lado da calçada; carro esse cujo motor está a falhar e, na última hora, deverá buscar os dois bandidos que há pouco praticaram o assalto. O termo “suspense”, usado banalmente em qualquer “papel” sobre cinema, assume sua verdadeira acuidade com essa expectativa assustadora; e a cena, depois de uma fuga frenética, termina com fogos de artifício (é assim que se deve dizer), com o incêndio do carro enquanto as notas bancárias valsam ao ar. O casamento dos dois fugitivos no meio da noite, em uma parada da viagem de ônibus, numa daquelas farmácias onde se casa em três minutos pelo preço de alguns dólares; do contraste entre o automatismo indiferente e desdenhoso da atendente e o fervor desanimado dos adolescentes surge-se uma certa noção de “sacramento”, que deve ser concedido apenas ao amor e ao consentimento mútuo: esses casamentos à meia-noite são os mais seriamente belos do Cinema, este que fez dos “casamentos” seu mais estúpido e monótono leitmotiv. Idílico, no bangalô, a fuga no carro e alguns despertares num quarto de hotel onde – garotas de Connecticut, apareçam! – há somente uma grande cama: isso foge de todos os clichês. A falta de diálogos e o frescor dessa sensualidade que constantemente “curto-circuita” os heróis os autentifica de uma forma totalmente estrangeira ao repertório hollywoodiano. Farley Granger (quem o filme lançou à proeminência) e Cathy O’Donnell (ainda desconhecida e mal-usada, de certa forma) são os comoventes Paul e Virginie desse longo naufrágio em que o amor somente os fará flutuar por um momento, cuja crescente adversidade os purificará pouco a pouco até que se tornem, ao final, completamente inocentes cujo inferno na terra deve dar portas a um paraíso de imediato. 

Não se pode chegar mais perto desse casal – à parte do casal não-adolescente de You Only Live Once – do que daquele de Devil in the Flesh (1947), iluminado pela mesma paixão pueril, mas “confortável” demais – o filme, não o livro em que não há casal, mas somente os cálculos de um coração frio – para comover. Aqui há uma fagulha, a alteridade de Keechie e de sua companhia, a quem sempre chama de garoto, tendo instintivamente sucedido nessa privilegiada operação mental que nos permite considerar com a concretude de uma rocha que, onde há amor, há somente um garoto. 

Nota:

1 – Jean Cocteau: Introdução ao Festival do Filme Maldito; (N. do T.)

(Traduzido por Miguel Fernandes a partir da tradução em inglês de outrem)