“Sempre…”: Johnny Guitar (1954) por Miguel Fernandes

Mulheres altivas que injuriam uma a outra num saloon; cores berrantes que se mesclam com a poeira de um deserto; voz feminina de canto tão belo que se escuta ao fim deste western: talvez tenha sido isso o que veio a perturbar quem acompanhou a estreia de Johnny Guitar. Mas podemos, sem o mínimo esforço, nos colocar na perspectiva de quem reagiu com estranheza às inadequações deste filme. Pois, protagonizando, essas mulheres estavam no “lugar errado”; pois, berrantes, essas cores destoavam da aridez desértica; pois, feminina, essa tão bela voz não era a “adequada” para finalizar um filme do wild west.

Enfim, falemos um pouco de um dos mais belos filmes dos fifties. À questão “o que é Ray: clássico ou moderno?” eu talvez não tenha respostas definitivas. Posso somente me esforçar em mostrar um ponto sobre o qual possivelmente haverá discordâncias – se houver, que bom. É este o caminho: pontuar algumas breves noções entre clássico e moderno e relacioná-las a beleza deste filme, mas tentarei ao máximo me distanciar do perigo de limitar nosso querido Johnny Guitar a essas clausuras em forma de termos.

A dicotomia entre “clássico” e “moderno” não é facilmente discernível. Trata-se de algo incerto e sobretudo volátil, que assume significados e características diferentes ao ser dito por quem quer que seja, não importa o momento. E, aqui, não nos referimos aos clássicos como o que resiste ao envelhecimento e à efemeridade, tornando-se uma natureza desprendida das amarras do tempo. Tratamos de convenções de Cinema, e, neste sentido, tudo o que me suscita o termo clássico é o concreto, o absoluto, o imediato; aquelas relações com o mundo diegético bem-definidas, claras e lineares; aquelas estórias cujo sentido se relaciona estritamente com o que se vê em tela – melhor dizendo, uma estória que existe somente enquanto é projetada, que se dá na concretude da imagem.                                                                                                                                  Se clássico é isto, eu diria de prontidão que Ray não o é – ao menos não essencialmente. Isso porque seus filmes possuem algo que me é moderno. Seus personagens são dúbios e inadequados; seus filmes são incertos e imperfeitos; e, ademais, têm estruturas que ao mesmo tempo são e não são lineares. Pois, mesmo que possuam uma lógica temporal clara e direta – com exceção dos flashbacks de The True Story of Jesse James (1957) , não se lida exatamente com o começo, o meio e o fim de uma estória. No caso de Johnny Guitar, lidamos com o que teve início bem antes d’a banda sonora de Victor Young nos tocar os ouvidos, bem antes de um céu azul com nuvens brancas, pincelado em trucolor com o nome de Joan Crawford, saltar-nos aos olhos. Com o quê? Com o florescer de um amor que não coube e não cabe em 100 minutos de projeção. Teria sido isso que Godard quis dizer quando, a respeito de um outro filme de Ray [Bitter Victory], disse “é mais que cinema”? Eis o filme que existe para além de si mesmo, que transborda para fora de si.

E talvez seja mesmo uma obra sobre transbordamentos. A relação de Johnny e sua amada Vienna se derrete para fora do ecrã à luz de velas em candelabros, fazendo-nos enxergar no presente a eclosão de um amor que se acendeu há 5 anos. Esse é um tipo de transbordamento característico dos filmes de Ray e de seus personagens amargurados. Basta lembrar de um James Dean vindo de uma cidadezinha desconhecida – esse turvo passado… –, que socou raivosamente uma mesa na delegacia e se enfureceu ao ser chamado de galinha (refiro-me a Rebel Without a Cause). São estes comportamentos explosivos e esses gestos tão simbólicos que revelam o que existe para além do filme. O que seria do Cinema sem eles? Veríamos este mundo que nem sequer é projetado? Sonharíamos pelos olhos de outrem? São esses gestos que tanto nos apetecem a incerteza – e que bela, inquietante incerteza –, pois não se pode estabelecer com a concretude de um Cinema clássico se significam algo além de si próprios, ou se são somente eles em absoluto. Não é certo se aquele gesto de Vienna, ao girar a roleta, significa alguma coisa ou se é apenas ele por ele mesmo. Poderia ser dito, pois, que evidencia como, no turvo passado, ela ganhou dinheiro para o saloon ilicitamente (“I’m not ashamed of how I got what I have”); mas, por outro lado, poderia ser dito que é um gesto que não se transborda para fora de si. Qualquer passo é incerto, mas, pela inexatidão do terreno, há margem para imaginar. Imaginemos, portanto. Suponhamos que sejam algo “para além das estrelas”. Suponhamos que sim, que estes gestos realmente são alguma coisa, pois confesso que essa possibilidade sempre me será a mais agradável de todas; sempre esses gestos que fazem esses heróis serem o que não aparentam ser, mostrarem o que não se pode ou não se deve mostrar.

Esses mesmos heróis, que são homens-crianças, e nunca homens e tampouco crianças. Essa foi uma observação que outros já fizeram antes de mim e melhor do que eu [1], mas ainda é proveitoso nos atermo a elas. Quando Turkey, o garoto ruivo, ferido no pescoço, ensanguentado de sangue rubro, volta ao saloon em busca de abrigo, Vienna – de branco, esplêndida – o acolhe. Não irei me ater à descrição desta dama, pois a mais bela já feita a esse respeito foi a de Truffaut, quando disse que “o branco invadiu seus olhos; os músculos, o seu rosto”. No momento em que Vienna, ainda em seu vestido branquíssimo, acolhe a nuca ensanguentada de Turkey em volta de seus braços, em um gesto de maternidade, ela lhe dá uma garrafa de whisky na boca. “A boy who plays with guns has to be ready to die like a man”, diz ela. Boy and man, garoto e homem, e uma mamadeira de whisky ao garoto-homem. Há de ter algo mais simbólico para expressar a natureza desses homens-crianças? Se há, eu não conheço.

Devo dizer que a consumação de Johnny Guitar se dá em um plano de reflexos. A banda sonora se intensifica; vê-se em plano aberto os personagens dispostos tais quais reflexos uns dos outros, como se suas virtudes e vontades durante todo esse tempo – esses cinco longos com os quais nunca temos contato direto – fossem da mesma natureza, mas apenas tomassem formas diferentes. Vienna e Johnny à esquerda, Emma e The Dancin’ Kid à direita; nesse barranco terroso na casa suspensa de madeira, nessa aridez sem cor em que se destaca o amarelo berrante de Vienna e o vermelho de seu lenço no pescoço – rubro como o sangue que encharcou o pescoço de Turkey. Disparos de arma: eis a catarse, e o que estava contido em tudo e todos se transborda.                                                                                                                       Passagem seria uma boa palavra, pois é isto o que me apetece dizer quando se vê este fim, quando o casal se distancia lentamente daqueles oficiais que o cercavam – todos imobilizados pelo choque, atônitos, em cores mórbidas e mortas – e finalmente passam por baixo de uma gruta com queda d’água. A água os purifica do fogo odioso que Emma antes arrojara. Molham-se, beijam-se, libertam-se [2].

Já se vão longas linhas e parece que foi dito pouco, mas acontece que serão sempre poucas, mesmo que longas, as linhas para se dizer algo sobre o mais apaixonado dos cineastas e sobre a natureza deste filme, um filme de gestos que podem ser tudo e qualquer coisa; um filme de personagens no presente que reverberam o passado; um filme de mulheres-homens [3], homens-garotos e garotos-homens; de personagens tão perto e ainda assim tão longe; de um cineasta para quem há coisas que são e ao mesmo tempo não são.

Serão sempre esses pensamentos que hão de me tocar quando, surgido The End na tela, um filme como este “acabar” – pois nunca acaba.
Sempre esses pensamentos. Sempre a paixão. Sempre Nick Ray. Sempre Johnny Guitar

Nota:

  • 1 – Éric Rohmer: “Ájax ou Le Cid?”, texto acerca de Rebel Without a Cause (1955);
  • 2 – Neste parágrafo, o conceito de passagem deve ser retomado ao conceito de catarse. Por catarse entende-se aquilo a que nos referimos como purificação ou expurgação. Em tais circunstâncias, estes termos devem ser compreendidos tanto como o desenlace de uma tensão quanto como purificação da aura tão violenta, odiosa que há em Johnny Guitar. Com isto quero dizer que o rito de passagem de Johnny e Vienna – isto é, as situações enfrentadas pelo casal, provando a resiliência do amor entre eles – se concretiza pela catarse. Os personagens podem enfim se amar quando essa natureza hostil é expurgada a partir da morte de um certo personagem – noutras palavras, a partir de uma catarse. Penso que uma situação similar a esta que acabo de citar pode ser observada também no final de Rebel Without a Cause;
  • 3 – Uma fala em Johnny Guitar: “Never seen a woman who was more of a man. She thinks like one, acts like one, and sometimes makes me feel like I’m not.”