“Tensão e Suspensão”: Amargo Triunfo por João Eduardo Gama

Mais do que uma inadequação, o elemento que constitui a modernidade e até mesmo a essência da obra de Nicholas Ray é uma noção espectral de irreconciliabilidade. Todos os seus protagonistas são assombrados por fantasmas do passado, um romance longínquo, um amor impossível, algum paraíso perdido para a marcha do tempo. Eles tentam alcançá-los, falham, então buscam se encaixar e viver mesmo assim, mas sabem que essa latência interna que os persegue é uma força muito superior a eles mesmos. O amargor, as contradições, o fracasso, a violência e a esparsa tentativa de a conter são todos consequências desse peso interior. As estruturas progressivas e culminantes das suas narrativas nascem daí. Em todos os seus filmes presenciamos um encontro simples a priori, mas que vai lentamente tensionando a força interior de seus personagens até sua explosão, até o expurgo completo do que os aflige.

(Ao receber a notícia que sua esposa chegou na base, o Major Brand se anima, mas é filmado por trás de grades. As paixões nesses filmes mais aprisionam do que libertam)

Em Amargo Triunfo, um dos últimos grandes filmes de Ray, não presenciamos a vibração colérica e melodramática de filmes como Johnny Guitar, não encaramos a morte da utopia romântica como em Amarga Esperança, não presenciamos o potencial destrutivo da violência como em No Silêncio da Noite, mas, paradoxalmente, ainda encontramos tudo isso de maneira silenciosa, furtiva e, acima de tudo, sintética. Um encontro entre dois homens frustrados e uma mulher; embates nos quais frases servem de espelhos e em que sentimentos se dão por olhares; um ex arqueólogo encarando as ruínas de um antigo amor. Tudo está aqui. O que torna esse filme então tão especial, dentro de uma filmografia já repleta de tantas peculiaridades? Seu senso de depuração.

O uso de terras estrangeiras e exóticas em filmes como Stromboli, Tabu e o Rio Sagrado, ficou marcado como uma espécie de exercício final. Os diretores expurgavam essas obras de qualquer elemento adicional para atingir um Zenith em seu próprio corpo criativo. Nesse caso, a vocação cênica que a branquidão das dunas e dos céus confere, provê ao filme uma potencialização ainda maior dos confrontos narrativos através de um grande fundo vazio e opaco. As distancias entre os corpos, perdidos nas bordas infinitas do CinemaScope, tornam esses vazios ainda mais fortes. Longe dos bairros planejados californianos, o confronto dos protagonistas com a morte, com as ruínas e com a guerra se intensifica por estar presente tanto em suas mentes como em suas realidades. A plasticidade intransigente da morte concretizada eleva o que sempre foi caro a Ray para o campo da imagem aparente.

Contudo, não se trata de um filme que se totaliza nessa superfície, mas sim que a transcende. Seja na presença de manequins, mímicas, maquetes ou uniformes, a epiderme que rege o microcosmos do filme, a que sustenta a vergonha do Major Brand e a frustração do Capitão Leith, vai se esvaindo progressivamente. Com o passar das cenas o romance inicial, a missão, tudo vai dando espaço ao embate entre os dois soldados; tudo vai se perdendo e clarificando. O resultado dessa jornada ascética é um momento final em que nada mais resiste além dos jogos de olhares, egos, medos e fraquezas. Fruto da tensão entre os dois soldados, cada um ali representando o que mais aflige o outro. É o estado de suspensão atingido pela encenação de Ray. Como afirmado pelo próprio diretor, o cinema não reconhece nem o tempo nem o espaço. Nos instantes derradeiros de Amargo Triunfo tudo isso fica claro: só o presente em toda sua radicalidade permanece na tela. Nos breves instantes em que Leith encara Brand e em que Brand encara Leith, sente-se finalmente o tão vigoroso senso de transbordamento atingido pelo cinema de Ray. A pulsão que comanda as imagens perfura sua superfície para revelar a verdade, a essência que cada um deles carrega em si.

(A Grande Testemunha (1956) de Robert Bresson)

As similaridades entre Robert Bresson e Nicholas Ray apontadas por François Truffaut ficam muito claras aqui. Assim como Bresson, Ray atinge uma verdade, um núcleo pessoal em cada um dos personagens através de suas imagens que só poderia ser descrito como abstrato, algo forte demais para ser ultimamente decodificado. Amargo Triunfo é um filme sobre amor e sobre morte e mais do que essas duas coisas; sobre duas pessoas que enxergam uma na outra chaves tão abrasivas para se compreenderem que se cegam.  

Por algum motivo, os silêncios nesse filme falam ainda mais alto do que os diálogos em toda sua sagacidade, objetividade e profundidade. Por algum motivo, depois de várias revisões, os toques e olhares discretos permanecem tão sofridos e ternos. Por algum motivo, o som baixo da areia soprando nos momentos finais ainda permanece, mesmo depois da sessão. Gostaria de saber o porquê, mas não sei. Consequência dessa síntese é que cada imagem nesse filme contém em si sua mais absoluta expressão. Assim como tudo aqui, esses elementos só podem ser sentidos, não compreendidos; só podem ser enxergados, não vistos. Muito ocorre, muito é dito, tudo é percebido e ao final nada mais significa nada, ou tudo, ou alguma coisa.

“I’m the best damn filmmaker in the world who has never made one entirely good, entirely satisfactory film”

            Nicholas Ray

Afinal de contas, como um filme como este, com tanta dor e frustração, poderia ser satisfatório? Como tanta amargura poderia ser recompensante? Como um filme com revelações tão cáusticas sobre os personagens e, finalmente, sobre nós mesmos poderia ser minimamente gratificante? A recompensa em assistir um filme de Ray está para além da beleza, para além do que se vê; está na verdade. Se para Goethe só o belo é verdadeiro, no cinema, arte da mentira, o belo é então o sentimento. E foram poucos, pouquíssimos que demonstraram o sentimento com tanto vigor como Ray, uma verdade que não gratifica, mas que revela e transcende.

(Ao descobrir sobre a morte de Leith, a esposa de Brand segura o braço de um manequim como segurou no braço do capitão no começo do filme. Presenciamos ao final a vitória da matéria sobre o espírito)

Como um grande português uma vez disse: “É só um filme? precisamente”