ENTREVISTA COM RODRIGO TEIXEIRA
Por J.E. Gama e Rafael Miranda
Teixeira é produtor de, entre outros, A Bruxa (2016), Armageddon Time (2022), A Vida Invisível (2019) e Me Chame pelo seu Nome (2018), pelo qual foi indicado ao Oscar de melhor filme. A equipe da Imagem & Palavra agradece a conversa.
J.E. Gama: Ao longo dos anos, a figura do autor foi discutida de várias maneiras. Nos anos 50, a crítica francesa aponta o diretor como a figura máxima, mas recentemente houve discussões que deslocaram essa importância para outras figuras, do roteirista até o produtor. Como você vê o seu papel criativo dentro do filme?
Rodrigo Teixeira: O produtor tem uma função muito importante no filme, como administrar problemas e usar o instinto dele para que as coisas aconteçam dentro do tempo. Tem produtores que são só executores; tem outros que veem o projeto como um todo; tem produtores que têm instinto…, mas eles sempre têm várias funções para executar. Tem produtor que vai paro set, executa uma função lá e depois vai para outro. E tem produtor que é o dono do filme, quem pensa no projeto como um todo, que é o meu caso. Eu me considero autor dos meus filmes. Eu sou autor quando escolho um diretor para um projeto, porque o fato de eu escolher o projeto e entregar para um diretor já é autoria, senão o diretor não chegaria nesse projeto. Aí tem um processo em que você oferece as melhores ferramentas para esse diretor trabalhar. Você precisa colocar limite onde o limite é preciso e saber não dar limite quando ele não é preciso. E provocar o diretor: o trabalho do produtor é fazer a coisa acontecer de forma que o projeto, no final, ganhe muito mais do que ele ganharia se não tivesse o produtor do lado dele. Gosto de trabalhar desse jeito, me considero parceiro e autor do projeto. Tem filmes em que eu me vejo mais autor e tem filmes em que eu sou dono do filme, mas minha colaboração artística não é profunda; é fazer o filme acontecer (apesar de assinar o projeto), mas não necessariamente sou o autor dele.
Rafael Miranda: Você poderia apontar, entre os filmes que produziu, aqueles em que você se vê como autor?
RT: A filmografia da RT já tem mais de 40 filmes, mas Frances Ha (2012), Alemão (2014), A Vida Invisível (2019), esse que estou filmando agora, o Enterre seus mortos (2023), O Farol (2019), Wasp Network (2019) … esses são alguns dos filmes que eu tive muito mais trabalho em troca.
JG: Você já disse que sua grande paixão é a literatura. Quais paralelos, semelhanças e diferenças você vê entre o cinema e a literatura? E, contando sua tática de comprar direitos de livros para torná-los em filmes, como isso interfere no seu processo criativo?
RT: Não me vejo muito longe da literatura e do cinema. Literatura foi hobby que virou trabalho, cinema foi hobby que virou trabalho. Eu sempre li vendo um filme na cabeça, sempre vi imagem, só não entendia por que eu tinha isso. Não sabia como prosseguir, o que fazer com isso. Depois descobri que deveria ser produtor de conteúdo, seja ele audiovisual ou literário, para sanar essa minha vontade de fazer alguma coisa. A literatura é base para tudo. Mesmo quando você tem uma ideia original que se transforma em livro e depois em roteiro, isso é literatura; roteiro é uma peça literária em alguma escala, só numa forma diferente de um livro, de um conto. É algo mais técnico, mas leio como se estivesse lendo um livro. Como tem livro chato, também tem roteiro chato. A literatura me dá muita base; eu tenho muita referência pra lidar com um projeto. Consigo ver um filme e pegar quais são as referências literárias que esse cara teve ao fazer aquele filme, de onde ele a puxa. A literatura me abre muitas portas. Às vezes eu tô lendo um livro e tem um parágrafo que abre uma porta, seja ele de ficção ou não, que me leva pra um lugar que eu nunca tinha imaginado, que me leva a um filme que não tem nada a ver com o motivo pelo qual eu estava lendo aquele livro. A literatura desperta minha vontade de querer fazer e a minha curiosidade. Por isso eu leio muito.
RM: A partir de tudo isso que disse, como você vê o cinema contemporâneo?
RT: Acho que existem dois movimentos específicos acontecendo agora, mas como estamos no meio deles é difícil defini-los de fato. O primeiro é um cinema mais inclusivo, então muitas pessoas estão sendo incluídas no processo do cinema. Já no segundo movimento, você tem um novo modelo de exibição, então acho que o cinema contemporâneo passa por uma reinvenção de exibição, que é a negociação da sala de cinema com o canal de streaming. Como você vai conseguir fazer esses dois modos de exibição coexistirem? Eu acho que essa é a maior questão do cinema contemporâneo, mais do que discutir qualquer forma ou visão artística. Em contrapartida, eu acho que o novo cinema, o cinema interessante, em que você tem algo de diferente acontecendo, é o cinema dirigido por mulheres, na minha opinião. O cinema sempre foi um ambiente muito machista, dirigido predominantemente por homens. E eu acho que esses homens fizeram pouca concessão, arriscaram muito pouco. Hoje as mulheres têm mais liderança de mercado, e eu acho que as melhores ideias estão vindo delas e o Oscar tem refletido isso muito bem, com Jane Campion e a Chloe Zao que ganharam ano passado.
RM: Como o James Gray, diretor que concilia uma herança cinéfila com preocupações conteudistas atuais, cujos últimos trabalhos você produziu, se destaca no panorama contemporâneo?
RT: Ele lida muito com a questão do pai, do paterno. Nos últimos três filmes dele, ele fala sobre isso, ele fala sobre o pai no Ad Astra, no Lost City of Z, do pai que desaparece com o filho na selva, ele fala dele com o pai dele nesse novo filme que a gente rodou, Armageddon Time (2022)… Nesse filme novo, especificamente, a gente fala de racismo também, o James trabalha com momentos da vida dele. Quando algo quica na cabeça dele, será explorado. Esse assunto do pai vem sendo explorado nos últimos três filmes, e no We Own The Night (2007), em que você tem aquele pai que morre e deixa os dois filhos policiais.
JG: O Gray é um diretor atual importante para nossa revista, parcialmente porque moderniza o espólio clássico de cinema e literatura. A gente gostaria que você falasse como você se aproximou dele, como foi o processo de produção dos últimos filmes.
RT: Cara, na verdade eu cheguei no James porque eu sempre gostei dos filmes dele. Quando eu vi We Own the Night, pensei: ”gostaria muito de trabalhar com esse cara”. A gente calhou de estar na mesma agência quando eu mudei, e partilhamos o mesmo agente. Ele me perguntou o que eu queria, e eu disse que gostaria de conhecer o Gray. Ele marcou uma reunião comigo. Nela, o Gray fez um pitching de um projeto de ficção científica, perguntou se eu não pagaria ele para fazer esse roteiro. Uma mistura de 2001 com Apocalypse Now, esse era o sonho dele. Aí eu paguei e desenvolvi o projeto que virou o Ad Astra. A partir dali eu criei uma relação com ele. Ele filmou o Lost City of Z durante o desenvolvimento do Ad Astra. Saindo deste, a gente já passou pro desenvolvimento do Armageddon Time, que rodamos ano passado. Rodei dois longas com ele. É um cara intenso, não é fácil. É um diretor difícil; é difícil trabalhar com ele. Mas eu gosto muito dele, me dou muito bem com ele, é um cara cinéfilo, tem um conhecimento de cinema muito profundo, poucos diretores com quem eu já trabalhei têm o conhecimento de cinema do James. Um que tem é o Marco Dutra, com quem terminar de filmar agora. Mas poucos diretores têm o conhecimento dele; vi poucas vezes algo semelhante. E acho que às vezes ele não é bem-sucedido. Os filmes dele têm problemas similares.
RM: De uma maneira prática, James Gray tendo toda essa opinião forte, Brad Pitt tendo possibilitado financeiramente o filme, e você tendo todas essas funções criativas, quem tem a palavra final nas discussões?
RT: Neste caso é o diretor do filme. Têm filmes que eu tenho a palavra final, mas perco o corte. No caso do Brad Pitt, ele deve ser escutado pelo diretor, porque sua palavra vale muito, pois sabe que viabilizou o filme.
JG: Ele foi um dos produtores de Ad Astra, certo?
RT: Ele se tornou. Sem ele não teríamos 100 milhões de dólares para filmar. Quando o filme é feito por causa disso, e a estrela é bem assessorada, ela sabe que tem poder de barganha com o diretor.
JG: Trazendo a discussão para o cinema nacional, vivemos em um momento em que, se, por um lado, temos um governo menos presente na viabilização dos projetos, por outro, temos nas empresas de streamings um novo horizonte no campo das produções privadas a ser explorado. A partir disso, como você enxerga o futuro do cinema nacional?
RT: O cinema nacional está sendo totalmente financiado pelas plataformas de streaming. Estamos vivendo um período complicado com toda essa burocracia de captação de dinheiro publico, e temos no Brasil empresas fortes de streaming pagando pelas produções. Acho que teremos um melhor governo caso o PT ganhe essa eleição, mas levará pelo menos um ano e meio até consertar tudo que o atual governo estragou na Ancine, com novas políticas de incentivo, lá para 2025. Ninguém espera até 2025. Como as pessoas vão trabalhar? O cinema é uma atividade muito cara, o brasileiro não consegue fazer barato. Nós temos uma herança da publicidade, a base do nosso cinema é de pessoas que fazem publicidade, não pessoas que só fazem cinema. Como base, como formação de gente, como formação de valor e como formação de sindicato. E o cinema não é publicidade, não tem o faturamento da publicidade, então temos um problema.
RF: Você já criticou a Netflix por não exibir conteúdo clássico, o que acaba ligando com a questão da formação de público. Qual o público ideal a ser formado e como?
RT: Acho que o público tem que ser formado com coisa boa. Pode até ter um ou outro gênio que não tem referência de cinema e acaba fazendo algo diferenciado, mas se você formar o público com coisa ruim, ele terá uma base ruim e vai te apresentar coisas ruins. O cinema é uma atividade centenária, os mestres que ensinaram uma geração de diretores que para na minha já não estão vivos ou já se aposentaram. Nomes referenciados como Coppola, Scorsese, De Palma e Spielberg não devem ter mais dez anos de carreira pela frente. Os caras que formaram minha geração estão acabando. Ninguém nasce com intuição de tudo. Se a gente não tiver isso, não sei como será.
JG: Não temos mais nomes como John Ford ou Samuel Fuller fazendo filmes. Você vê um novo público sendo formado por produções como as da Marvel, ou produções sem toda essa pungência criadora?
RT: É um público geek sendo formado. Se esses jovens buscarem um Ford, um Fuller, um Hawks, um Hitchcock ou até o pessoal da Nouvelle Vague, acharão chatos. Tem que ter alguém que ofereça pra eles. E hoje nosso tempo é escasso. Ninguém tem a capacidade de ver a quantidade de filmes do passado. Quando eu tinha 10 anos, lá em 1986, pensando em 1936 eu tinha 50 anos de filmes para ver. De 1986 para cá, já foram mais de 30 anos, somando 80 anos de filmes para ver. O cara que está se formando hoje deve olhar para um cinema centenário. A carga de conteúdo a que ele deve assistir é muito maior do que a que eu tive. Eu assistia a muitos filmes desde criança, mas meu entendimento do que assistia, minha formação em um nível maior, foi depois de 25 anos de idade, quando comecei a abrir a cabeça e ver um outro tipo de cinema, identificar de fato o que eu gosto ou não gosto.
RM: Você ainda acredita na possibilidade de união entre o investimento público e o privado?
RT: Não acredito mais. Não é possível. O investimento público não viabiliza o investimento privado. O único investimento privado que pode acontecer no investimento público é alguém de um canal comprar o seu filme com o investimento privado para exibir e você receber dentro do seu projeto. A conta não fecha.
JG: Voltando a esse ponto da formação de público. James Gray fala em entrevistas que, historicamente, entre os filmes bastante independentes e os blockbusters, existia uma faixa de filmes de orçamento médio, em que boa parte dos grandes filmes foram feitos (filmes como Touro Indomável, de Martin Scorsese), e como esse intervalo tem se fechado cada vez mais. Hoje vemos ou filmes de pouquíssimo orçamento, ou filmes gigantescos. Como você enquadra esse meio termo?
RT: Os filmes de 20 a 60 milhões que o James Gray fala existem hoje, mas existem como 100. Tem muito filme que não precisava ser feito com 20 ou 40, então por que eles custam isso? Porque 15 milhões vai só para o ator. Esses filmes de médio orçamento vão voltar a existir, até porque ninguém tem condições de gastar 100 milhões de dólares em um filme. Agora, terão que encontrar filmes muito bons com orçamento mínimo. The Power of the Dog (2021) é um filme que deve ter custado não mais do que 20 milhões de dólares, está nesse meio. O Coda (2021) e Drive My Car (2021) não custaram 10 milhões, enquanto West Side Story (2021) custou na casa dos 100. Cada filme custa uma coisa. Acho que esses filmes de médio orçamento vão sofrer, porque é mais fácil você perder 60 milhões em seis filmes do que perder 60 milhões em um filme. A monetização é diferente hoje. As salas de cinema vão voltar? Sim. As pessoas querem socializar, querem ir ao cinema. O cinema que eu vi já não é o cinema que vocês viram. O cinema que eu vi tinha fila de dar voltar no quarteirão. O prazer de ir ao cinema era enfrentar a fila, acompanhar as pessoas que estão lá, ouvir o que acham daquele filme. Isso não existe mais.
JG: O filme independente independe do quê? Hoje, quando pensamos nos festivais, parece que eles têm uma importância ainda mais forte do que tinham no passado. Como você vê a figura do festival para o filme de autor hoje?
RT: O filme independente independe do estúdio, é feito sem dinheiro do estúdio, sem dinheiro do chefe, sem alguém dirigindo o que você fará, feito com dinheiro independente e sem a garantia de exibição. O festival é a plataforma de lançamento desse filme. Para ele alcançar o prestígio você tem que pensar o seguinte: tem 5 principais festivais de filmes por ano (Toronto, Sundance, Berlim, Veneza e Cannes), em um line-up de 20 por festival, tem 100 filmes por ano que entram nesse perfil chamado de filme de arte ou filme independente, que encontram espaço dentre um universo de milhares de filmes sendo feitos todo ano. Somado aos filmes comerciais, sejam mais 50 ou 100 filmes, são 200 filmes por ano que você tem a capacidade de analisar e falar “são esses os 200 melhores filmes do ano no mundo inteiro”. Com o Brasil pré-pandemia fazendo 150 filmes por ano, tendo espaço para 200 filmes no mundo, não fecha. Do Brasil saem 2 ou 3 que podem entrar na lista, o restante é para o resto do mundo. E é nestes festivais que a massa crítica que interessa o cinema mundial está.
RM: Você consegue apontar nomes que se beneficiariam do médio-orçamento?
RT: Acho que todo mundo se beneficiaria disso. A gente tem que esperar. Estou fazendo um filme que está custando 30% mais caro porque estamos filmando em um momento com muitas restrições impostas pelo covid e porque o mercado está aquecido. Ficamos dois anos sem filmar, agora todo mundo que voltou a filmar está cobrando mais pela disponibilidade. Você não tem formação, você não formou equipe, não tem material humano para contratar. Você está competindo com a publicidade, com as séries, com os filmes…. O cinema nacional não gera receita, então precisamos vender para os canais de streaming. Dependendo do streaming talvez tenha que custar mais barato, no entanto, tem filmes que pedem uma maior ambição. Posso vir a fazer um filme de 40 milhões de reais no Brasil? Posso. Só depende do streaming entender que esse filme é uma alavanca de assinatura para ele. Se entender, me dará o dinheiro. Se ele conseguir 100 mil assinaturas a 40 reais, ele pagou o filme.
JG: Neste universo mais aquecido do cinema nacional, quais os principais nomes que chamam mais sua atenção dentre os potenciais ou já estabelecidos?
RT: Um monte de nomes. Estabelecidos, você tem um lugar muito acima em termos de reconhecimento em qualquer parte do globo, hoje, nomes que conseguem fazer o que quiserem, como Walter Salles e Fernando Meirelles (que carregam isso há anos), Kleber Mendonça Filho (como uma terceira força, por tudo que fez nos últimos anos), e Karim Aïnouz. Depois desses quatro nomes, temos milhões de outros diretores que juntos formam esse universo.
JG: Você já esteve envolvido em projetos com nomes como Claire Denis e Abbas Kiarostami. Gostaríamos de saber, além da experiência de estar em contato com nomes responsáveis por levar a linguagem contemporânea a novos limites, se você acha que é parte da tarefa do produtor levar para o público nomes experimentais ou nomes que, dentro do contexto artístico, levarão as coisas a novos horizontes?
RT: O do Kiarostami não completei o trabalho, não tive uma relação com ele porque o conheci pouco antes da sua morte. Com a Claire Denis eu continuo trabalhando, inclusive ela acabou de mandar uma mensagem para mim. Sobre os filmes experimentais, eu fiz Love (2016), do Gaspar Noé, que é quase experimental. Mas não acho que é responsabilidade do produtor fazer um cinema muito experimental. Acho que tem produtores que querem fazer esse tipo de cinema, não é meu caso.
JG: Os filmes que você tende a produzir estão nessa linha de filmes um pouco mais artísticos ou com uma tônica de cinema de autor?
RT: São filmes narrativos. Gosto de produzir boas histórias com alguém que saiba fazer essas boas histórias virarem bons filmes. Se não tem história, não importa quem seja o diretor, não vou fazer. Eu faço filmes a que gostaria de assistir. Se não quiser assistir ao filme, não tenho que fazê-lo.
RM: O que você diria para todos que querem atuar no cinema na mesma função que você, com a criatividade que você mencionou, no Brasil?
RT: O cinema é uma atividade difícil; para seguir carreira você deve ser persistente, senão é fácil te quebrar e você abandonar. A cada dez pessoas, duas serão bem-sucedidas. Se você for uma das oito que não foram bem-sucedidas, você deverá lidar com esse sentimento de frustração.