PERFIL DE JAMES GRAY – PARTE I

Por J.E. GAMA

O objetivo desse texto é analisar os dois polos da primeira fase da carreira de James Gray por meio de seu longa de estreia e da última das suas 4 primeiras produções, abordando assim o filme de máfia e o romance.

PARTE I

“FUGA PARA ODESSA”  

Se o cinema é a arte de fazer fantasmas retornarem à vida, a de eternizar os espíritos que preenchem as telas, é porque, em primeiro lugar, é uma arte de presenças. Se existe alguma semelhança nevrálgica entre ele e o teatro, essa semelhança se insere na capacidade compartilhada de conter a força bruta de dois corpos em cena e as tensões, intenções e contenções que os gravitam. Esse movimento obscuro que essas duas artes traçam em direção à captação dessas essências é, sem dúvida alguma, dos seus grandes mistérios. Entretanto, uma diferença os separa: o registro do cinema é eterno, o do teatro é passageiro.

O cinema clássico americano, o cinema de Quine, de Ray e de Preminger, pode não levar e questionar a sedução e os enigmas dessa encenação às últimas instâncias, como faz o essencialismo de Robert Bresson ou o hieratismo invisível de Manoel de Oliveira, mas, por outro lado, constitui uma honestidade, frontalidade e força, que a sublima ao presente de forma ímpar. Desse movimento nasce uma filosofia do olhar. 

Little Odessa, primeiro filme de um ainda jovem James Gray, parece se tratar disso, uma obra que dentre todas as dinâmicas e pretensões se reduz, em última análise, a um fantasma que se faz presente, e todas as reverberações da força desta presença. Tudo sempre observado por um olhar terno, minucioso e que extrai da sua objetividade sua própria subjetividade, assim como os mestres do cinema clássico americano fizeram.

Em meio à totalidade negra da tela, um feixe de luz rasga seu centro ao iluminar o olhar perdido de Tim Roth. Esse rompimento, que consigo parecer ainda conter alguma sacralidade e pureza, ambas potencializadas pelos suplícios ancestrais de uma ópera de Arvo Part (compositor que moderniza o espólio clássico de forma altiva, assim como Gray), é radicalmente interrompido por um gesto corriqueiro. Um gesto que não se eleva, transforma ou traduz. O protagonista chega até um homem sentado em um banco, puxa um revólver e o assassina. Segue assim então até um telefone público onde recebe seu destino: retornar à sua cidade natal, onde encontrará sua família.

Em alguns poucos segundos da projeção, segundos que não totalizam em si nem mesmo um minuto, o cinema de Gray parece já estar todo formado. Um cinema que, como toda arte trágica, se forma da radicalidade de contrastes, que nasce da catarse provinda da violência, que se eleva pela universalidade de seus temas e execuções, sempre extraindo do caráter pedagógico das suas ações e contradições um lirismo mudo e caloroso. Mais próximo a Agamemnon do que a Homero, o retorno ao seio familiar significará aqui a concretização de um destino ininterrompível que resultará no Apocalipse.

O movimento da narrativa que então desponta não é muito diferente das próximas produções de Gray, a tautologia que parece sempre perseguir a filmografia dos grandes diretores está também aqui presente. Assumindo diferentes desvios estéticos e narrativos, James contará pela primeira vez a única história que aparenta conhecer: A de um indivíduo que, ao reafirmar sua presença, terá seu caminho radicalmente interrompido por um vórtex de influências familiares, e as muitas consequências fatalistas que terão sua gênese nesse (re)encontro. Junto ao gênio da criação, Gray possui o da leitura, e soube muito bem rastrear o interior das suas grandes influências para as reincorporar em seus filmes. Como Michael Corleone, Joshua não pode escapar de seu passado, dos seus crimes, do seu sangue; mesmo na terra da liberdade, seu caminho e sua independência lhe são negados. Como os protagonistas de Friedkin, a imensidão material do mundo parece engoli-lo pelas bordas do Cinemascope.

Partindo dessas condições, os primeiros momentos da película se instauram. Encontros secretos, demasiadamente humanos por não conseguirem conter dentro de si as limitações do proibido. Frases esparsas que conectam aqueles que se amam quase como uma força do destino. O encontro dos dois irmãos, enquadrado dentro do plano por uma porta que o recorta. O encontro com a ex-namorada, que se apropria de todo o espaço do quadro. O encontro com o pai, cujo confronto proveniente se dá dentro da infinidade claustrofóbica de um corredor no ambiente doméstico-familiar. As regras que Gray aplicará às dinâmicas da sua mise-en-scéne se revelam: jogos de distâncias (no tempo e nos espaços), diálogos que eclipsam e revelam sentimentos em um jogo de força e vulnerabilidade, uma fé quase garreliana no poder da luz sobre as faces, e a presença homônima da violência em tantos aspectos dessas relações (a brevidade e ternura dos contatos, a efemeridade dessas presenças, a timidez e força de sentimentos que nunca respiram devidamente). Os traços impressionistas no momento do último assassinato, a cena viscontiana do aniversário, os momentos de solidão em meio a uma urbe fria, distante, morta; todos indicam uma fé única na potência pictórica cinematográfica, um retorno à potência de diretores como Michael Cimino que é, nos momentos finais, confirmado com um aceno direto. Sob a carcaça de um filme de crime, James dirige um drama familiar, compensa a solenidade do aspecto conjugal com a desesperança da morte

Se por um lado os virtuosismos e referências das imagens parecem indicar um caminho de pretensão, a construção dos gestos indica uma simplicidade desarmante. A humanidade do filme é sempre impressa no seu senso mais imediato, telúrico, material. Gray não almeja uma superlativação dos indícios melodramáticos como Ford ou Walsh, opera sempre sobre o signo do cotidiano, da normalidade, de uma sobriedade trágica que nega até sua verve espetacular. A evidência disso está em como os gestos se desenvolvem de maneira mais simbólica do que física, estão nos encontros despretensiosos dos irmãos, na face cansada de Roth debruçada sobre sua mãe, pelas sombras de um pai que agride um filho. A natureza espectral e transiente da narrativa e da cultura “We are jews, we wander. Didn’t you learn that in school ?” Se choca com o material em seu imediatismo violento, a crueza dos tiros, a omnisciência da encenação. A morte vem de uma troca de olhares sútil, notas de uma ameaça que se constrói através de um sistema de latências. A potência dessas eminências aqui se faz mais como um artifício dramático que se incorpora na profundidade das interações.

Interações essas que têm seus fins pela mesma gênese do retorno de Joshua, a violência. Dois corpos frios e ensanguentados sobre o asfalto frio de uma rua qualquer, queimados nas chamas de uma fornalha qualquer. Como a película exibida para Furlong no começo do filme, as almas queimam logo após compartilharem suas verdades com o espectador. 

Daí, então, o que segue? Um olhar, mas que olhar? Um olhar que contempla a morte, um olhar interrompido, assim como o de Michael Corleone, que contempla um horizonte fechado pelas paredes do ambiente familiar. Seria demasiadamente fácil apontar para alguma dialética simbólica entre o primeiro e o último momento de Retorno a Odessa, mas parece que na intermissão entre esses dois pontos ao mesmo tempo tão próximos e tão distantes na qual James cria seu universo particular, pouca coisa realmente se altera. Roth retorna a seu ponto primário: perdido, sozinho, refém de seu passado e de seu sangue. O que resta então? Os momentos passados ao mesmo tempo independentes e confluentes que conferem ao filme seu impacto maior, momentos que resistem nem que só como memória. Talvez essa seja a grande herança do espólio artístico do qual Gray se apropria para enfim o modernizar: A fé em momentos, e a certeza de que sua eternidade, mesmo em toda sua beleza abrasiva, seu amor imanente, e sua verdade absoluta, dura muito pouco.

PARTE II

“AMANTES”

Se Humphrey Bogart, em In a Lonely Place, nasce quando sua amada chega em sua vida, Leonard, ou pelo menos o protagonista que conhecemos aqui, renasce quando ela vai embora. Em Amantes, o último filme dos anos 2000 de James Gray, as regras do diretor se invertem: o ínicio não se dá mais pelo retorno de um fantasma, mas sim por uma ação motivada por sua ausência – uma tentativa de suicídio. O amor, aqui, sem ironias, sem piadas, sem qualquer tentativa de alívio de cargas, é a única coisa que importa. Então o que acontece quando ele morre? Como amar e quem amar em um mundo assombrado pelo espectro do cotidiano, da normalidade e da submissão? Sob as reverberações dostoievskianas de Noites Brancas, essa serão as questões a que Gray tentará responder.  

Mais uma vez uma presença que surge da escuridão, mais uma vez o apocalipse condensado em um frame. É difícil pensar em um drama nos dias de hoje que inicie de maneira tão franca, que filme o pesar da morte de frente, que consiga conter a estranheza, a confusão, a inadequação sem nenhum eco de naturalismo primário. Esse caráter evocativo elucidado pela cena inicial é mais uma vez elipsado pelo retorno ao ambiente familiar, um movimento comum nas produções precedentes do diretor, um movimento sempre acompanhado pelo signo da derrota. É ali, sob as poltronas oitentistas e as tintas douradas e envernizadas de seu lar, que as duas principais presenças do filme se apresentam, duas faces de uma mesma moeda, o axioma central da filmografia de Gray: o caminho de um indivíduo, e as influências exteriores familiares que buscam o cooptar. De um lado, Michelle; do outro, Laura.

Michelle é, de certa forma, o balanço entre morte e erotismo que o cinema tão bem condensa (muito provavelmente devido ao seu trato para com o mundo material). Suas ações são absolutamente indecifráveis e autodestrutivas; tudo nela é oblíquo, frágil, sedutor. É essa mortalidade que ronda sua presença, a mesma que ronda Kim Novak, em Vertigo, que obceca Leonard. O mundo de amantes, como os outros mundos de Gray, é um mundo cinza, cotidiano, da rotina, de pessoas comuns; é o andar disruptor a todo esse marasmo que faz com que ele se apaixone por ela.

Poderia se dizer que Amantes é um filme sobre as diferentes maneiras de filmar a luz sobre seu cabelo, não fossem as tão belas outras coisas que James aqui filma. Não é necessária uma análise muito aprofundada para perceber a relação que a Mise en Scène estabelece entre os dois. O contato entre eles sempre é acompanhado pelo espectro de uma certa liberdade: o salão vazio, a boate, o horizonte do terraço. Ao se aproximarem, todo o peso do mundo parece se dissipar ali, mas, para tanto, outros pesos entram em jogo. A liberdade se reverte em dependência, fraqueza, impossibilidade, quando não em tragédia.

Laura, por sua vez, é a síntese da condição familiar que permeia as relações do protagonista com o mundo e si mesmo. Sua presença é a mais pura reafirmação dos moldes familiares. A maneira como o primeiro beijo entre ela e Leonard se dá em frentes a quadros de várias gerações da família já é um indicador do que ela reserva para seus futuros. A luva dada em um restaurante como presente, sua própria relação maternal com o protagonista que reflete a proteção e nutrição nesses gestos simbólicos e profundos, a transição das fotografias de Leonard das fotografias vazias e opacas da urbe fria para as familiares, todo um acúmulo de pequenos morna que inferem uma felicidade morna, conjugal, que o reinserem com ainda mais força a seu ponto de partida.     

Dessa infinidade de contradições, de prisões confortáveis, de caminhos muito dúbios para fatalismos e de fatalismos muito certos para alguma liberdade, constitui-se Amantes. Mas mesmo com toda a melancolia, toda a riqueza imagética e complexidade textual, um elemento ainda falta para que tenhamos certeza de que estamos em frente a um filme de Gray: a violência. Onde jaz essa peça tão essencial para a tragédia, ressonante em cada passo aqui, em cada suspeição? Uma peça tão necessária para a configuração dessa natureza barroca de onde irriga a liberdade romântica? Talvez sob uma nova pele.

Se, em Os Donos da noite, filme de James que precede Amantes, a violência em seu senso material atinge um certo paroxismo nas sequencias mais sufocantes, talvez agora seja o momento de reduzi-la, transformá-la, buscá-la nos mínimos detalhes para ver se a partir daí é possível encontrar alguma verdade. Talvez não seja mais nos tiros que a encontremos, mas sim nos gestos, nos olhares, na carga de ir e ficar, no peso inscrito em conter o que se sente. A explosividade da pólvora se transfigura para a radicalidade dos sentimentos, e dos indícios físicos que a revelam, uma natureza pictórica melodramática destoante de tudo visto até então emerge.

O movimento entre dinamismo e hieratismo, que torna tudo tão dialético nesses filmes, é desempenhado aqui pela relação entre esse melodrama e a sempre presente tragédia. O melodrama, como sistema de gestos e movimentos que revelam sentimentos a partir de sua fisicalidade, do material ao imaterial, entra em choque com a tragédia e a intransigência de sua predestinação, com as forças invisíveis que engendram sua potência e assombram os personagens de forma voraz. Tudo está contido em ações, como o movimento de Gwyneth ao mostrar seu peito pela janela, seu caminhar pelo corredor escuro, o recolher de uma luva, todo o peso que reside na dificuldade em acessar esses sentimentos. Momentos por vezes duros até demais para serem assistidos.

Para atingir o que se atinge aqui, no entanto, é necessário manter essa dialética em um equilíbrio quase mizoguchiano na relação entre câmera e ator, um processo criativo profundamente calcado nas distâncias que se tomam a partir daí. Se o olhar de Gray se encontra no extremo oposto da pornografia, é porque se sabe que, como Ford a filmar a ficção, e Coutinho a filmar a documentários, que o espaço intermediário entre ele e o que filma é uma distância que deve ser medida com muita parcimônia.  Esse equilíbrio é mantido tanto no campo da imagem – as distâncias entre as janelas de Leonard e Michelle, a resignação quase anticlimática, ascética em alguns momentos de tensão – quanto nos níveis mais textuais e simbólicos. Todos têm seus motivos, tudo tem um porquê; não é bem uma questão de se perder em um relativismo moral infinito, mas sim de reconhecer a riqueza que permeia a indecisão, o medo; é traçar a linha entre visível e invisível levando tudo sempre com muita franqueza, com muita lucidez. É esse questionamento a respeito do distanciamento – posto por De Sica a 60 anos atrás – que Gray retoma como poucos e que insere tanta potência em cada gesto, em cada aproximação, tanto da câmera, quanto entre os atores.

A reflexão sobre esses questionamentos aparentemente esquecidos pelo cinema contemporâneo, a busca pela inserção da sensualidade e da leveza do texto Dostoievskiano a seus temas e contradições sempre de forma livre e altiva, todos confluem para um mesmo ponto: o olhar moderno desse artista clássico. A modernidade em Gray se dá por uma atitude crítica imanente, tanto sobre si (suas concepções, certezas, obsessões) quanto sobre a reconfiguração de suas influências. Após uma série de revisões sobre seus temas, essa postura se torna clara nessa quarta produção. A mesma família que acorrenta, impede e domina, é a responsável pelos abraços e olhares espirituosos e acalentadores, atos de uma verve calorosa que só os gestos de Isabella Rossellini são capazes de transmitir. O signo da indeterminação ilumina o jogo entre perdição e salvação que os personagens jogam, e é a partir da riqueza desse jogo, que aqui chamo de humanidade, que acredito que a força desses filmes se estabeleça. Nada foge do questionamento, nada se totaliza como absoluto. Se se adapta Dostoievski, duplica-se o díptico romântico para os dois lados, brinca-se com as bussolas morais assim como se joga com os moldes hitchcockianos de amor, obsessão, erotismo e classe. É desse mesmo arranjo de linhas divergentes que o lado mais político do filme emana. O que é a política senão um jogo entre vida pública e privada? O que substancia as causas e consequências dos personagens senão isso, a troca entre esses dois mundos? Nada se encontra em um estado puro; tudo é motivado e revolto por influências que se dão nos mais diversos níveis, desde posições sociais até acordos familiares. Os ecos ancestrais da cultura nunca deixam de assombrar as imagens desse filme.     

Ao final, após elipses magníficas, quase imperceptíveis, reviravoltas melancólicas e gestos virginais e corrompidos pelo desejo, o protagonista de Amantes se vê na mesma posição que o protagonista de os Donos da noite, mas de certa forma um pouco mais dúbia, como tudo na natureza humanista desse filme: derrotado e eternamente assombrado por seus fantasmas, mas talvez salvo (?), Leonard se funde junto à mobília nos interiores do seio familiares, em um imagem indescritivelmente sórdida, graciosa e melancólica: a de um abraço.

“Impossível com você, impossível sem você. Tchau, amor

Jean Garrett